segunda-feira, 20 de agosto de 2012

sobre 'O Processo' - de Franz Kafka (P1)




sobre 'O Processo' (Der Process, 1925)
de Franz Kafka (1883-1924)

O Processo enquanto alegoria do julgamento

Parte 1
Autor e Obra
Muito tem sido escrito sobre o escritor judeu-tcheco, de língua alemã, Franz Kafka, sobre sua vida e obra, sobre as influências sobre autores que marcaram o século 20, tanto na literatura quanto no teatro e no cinema. Muito se debateu sobre o que se pode interpretar em sua escrita, suas motivações e alusões, suas parábolas com ou sem fundo moral, além do aspecto fragmentário e incompleto do espólio. Textos que deviam ser queimados, segundo o desejo do autor, mas que foram preservados pela ação de um amigo.
Na obra de Kafka podemos encontrar a questão da Culpa, do insucesso da realização pessoal, quando esta inclui as outras pessoas. Perceptível a incapacidade de agradar ao outro, com toda a pressão para corresponder às expectativas. Afinal, a pessoa em sua individualidade, o cidadão em sua vida social, não satisfaz os imperativos, as ordens das autoridades, e assim se assemelha ao filho, ou a filha, que não consegue satisfazer às expectativas do pai e / ou da mãe.

Se Kafka pretendia algo além de desabafar sua culpa, se pretendia uma carreira literária, se queria avisar-nos de algo sinistro, podemos fazer conjecturas. Em sua obra falta completar algo, os próprios textos apresentam lacunas, ou podem ler lido em outra ordem. No mais, a legitimidade dos textos: o que exatamente o amigo Max Brod publicou? Alguns esboços? Cadernos incompletos? Quais na íntegra ? Na ordem desejada pelo autor? Como reconstituir uma ordem correta?

(Kafka) expressava em seu testamento, o desejo de ver destruído 'tudo o que escrevi, e sem leitura prévia'. Devemos a seu testamenteiro, o escritor Max Brod, a preservação ds obras, em flagrante desrespeito à vontade do amigo.(Erwin Theodor, Introdução à Literatura Alemã, RJ, 1968, p. 154)


Sabemos que M. Brod publicou as obras de Kafka em Praga (em 1934-37), e que uma edição (de 10 volumes) foi publicada em New York, em 1950-53, mas pelo menos até 1995 não havia uma edição crítica. O que temos em demasia são as tentativas de interpretação, e de vincular influências (assim emAngústia da Influênciade Harold Bloom). Quais as influências para o realismo mais metafísico para Kafka? São citados Pascal, Kierkegaard , Flaubert, R. Walser. Por outro lado, a obra de Kafka exerceu influências sobre os autores Gide, Sartre, Camus, Claude Simon, Jorge Luis Borges, Canetti, Buzzati, e provavelmente Brecht.


uma vinculação direta com a literatura do século 20. Mas intenção de Kafka fazer literatura? Ele se julgava um 'literato'? Ou escrevia para desabafar traumas, descrever sonhos e pesadelos? Não escrevia para resguardar sua sanidade mental num mundo opressivo e absurdo? Ou ousamos interpretar a teologia de Kafka? Ou a moral? Ou a simbologia? Admitimos uma leitura sociológica?

É possível também ler a obra em seu contexto. Quando e onde foram escritos os textos de Kafka? Sabemos sobre os estilos de época, principalmente do Expressionismo e do Surrealismo, e pensar se Kafka seguia algum estilo, ou transitava entre eles. Kafka é um expressionista? Kafka é um surrealista?

Expressionismo. A reação contra o positivismo e o materialismo levou a um retorno à metafísica. Forças, até então caladas, levantaram-se, protestando contra a 'pequena existência burguesa', contra as convenções sociais e preconizando um 'sagrado entusiasmo'.(Theodor, ibidem, p. 135)

O Surrealismo se manifestava nos jovens Döblin e Kafka, (...)(idem, ibidem, p. 136)

O Expressionismo é percebido como um movimento de neo-idealismo, e igualado ao Surrealismo pelo aspecto irracionalista. Mas outros elementos na obra de Kafka que intensificam aspectos dos citados movimentos e outros que singularizam o autor judeu-tcheco que escrevia em alemão. Temos o indivíduo solitário, sem ilusões, contra a família, contra as hierarquias, num mundo totalitário, numa vida sem-sentido, com culpa e desesperança, meio ao absurdo de situações irracionais, desconexas, numa busca de transcendência, submetido ao poder ora de um Tribunal, ou Força Julgadora (em 'O Processo') ora de um Poder Supremo (em 'O Castelo'), inalcançáveis ou incompreensíveis.

As obras de Kafka são, de um modo geral, parábolas sem conclusão. Oferecem ao leitor processos, manifestações e feitos modelares que, sem expressá-lo nitidamente, marcam posições fundamentais de gênero humano, sendo que assim provocam a perplexidade de uns e a curiosidade de outros, vindo a exercer profunda influência.(Theodor, ibidem, p. 156)

A obra de Kafka tem possibilitado várias leituras, desde a alegórica (com H. Bloom, E. Theodor) à mística-religiosa (com M. Brod), desde a simbólica (ver J. L. Borges) à psicológica (aspectos da introversão, do inconsciente, dos sonhos, da relação com a família, o pai dominante) à sociológica (o indivíduo impotente diante da burocracia, da Justiça, da religião, do Estado, diante da Leiseja estatal ou paterna)

A obra de Kafka é mesmo inclassificável? Sua interpretação, afinal, varia de acordo com a perspectiva do leitor. Precisaremos ver a Estética da Recepção. Algumas opiniões se destacam mais na crítica. É considerado que Max Brod seja um daqueles que fizeram uma leitura 'teologizante' de Kafka, segundo argumenta W. Benjamin. Argumentos não faltam, seja a favor ou contra.

Trata-se de uma obra incompleta, fragmentária, contraditória, ambígua; é um judeu tcheco que escreve em língua alemã. Sabemos que Kafka se sentia deslocado entre os judeus, os tchecos e os alemães da Boêmia. A linguagem é tecida em alemão padrão, às vezes formal e burocrática, não popular, mas não acadêmico, sem floreamentos ou pedantismo, sendo simples, clara, ainda que a narrar fatos estranhos, sem verossimilhança, em total falta de sentido, numa espécie de realismo absurdo (se compararmos com o 'realismo mágico' de um Jorge Luís Borges, de um Murilo Rubião, de um Gabriel García Márquez). Nos contos de Jorge Luís Borges, por exemplo, podemos destacar o estilo, além dos enredos, mas em Kafka o destaque é mesmo o enredoou o absurdo do enredopois o estilo é simples, claro, formal, escrito num alemão padrão de um funcionário de Praga.

Segundo W. Benjamin (no ensaioFranz Kafka, 1934, trad. Sérgio Paulo Rouanet, Brasiliense, SP, 1987)O mundo das chancelarias e dos arquivos, das salas mofadas, escuras, decadentes, é o mundo de Kafka.Ou dos indivíduos submetidos a (e afastados de) instâncias todo-poderosas, tais como hierarquias de funcionários, ou tradições familiares,

O pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície.

Também “O pai é quem pune, mas também quem acusa. O pecado do qual ele acusa o filho parece ser uma espécie de pecado original.” Assim um pecado anterior ao culpado, “'Faz parte da natureza desse sistema judicial condenar não apenas réus inocentes, mas também réus ignorantes', presume Kafka. No mundo primitivo, as leis e normas são não-escritas. O homem pode transgredi-las sem o saber.


Percebe-se tais aspectos na obra 'O Processo', a partir da qual podemos levantar questionamentos. Qual o crime cometido por Joseph K. ? por que será condenado? É a sua condição humana? É a perda de sua individualidade? É culpa de sua não-adequação em relação ao mundo? É por que ele não consegue satisfazer as expectativas dos outros (i.e., do meio social)?

Por qual 'pecado' ou crime somos processados e condenados? Por que devemos sempre nos justificar? Quais leis, imperativos, mandamentos, regras, devemos seguir? 'Não julgarás', 'Não matarás', Amarás o teu primo', 'Não desacatar as autoridades', 'Não pisar na grama', 'Jogar lixo no lixo', etc.

Somos culpados ou inocentes? Sentimos que somos inocentes? Esperamos que nos considerem inocentes? Ou a culpa é uma ferida íntima? A angústia advém de se sentir culpado? Ou de sermos inocentes e os outros nos julgarem culpados? Devo ser inocente aos olhares alheios ou para mim mesmo? Podemos lembrar de Raskólnikov, do romanceCrime e Castigode Dostoiévski, para quem o castigo para o crime é a permanente culpa obsessiva que o oprime, mesmo que os outros não saibam de seus 'pecados'.

'O Processo' pode ser lido enquanto alegoria do julgamento. Ou: quem pode julgar? Ou uma parábola sobre a culpa? Culpa diante de si mesmo e diante do outro. Tema propício às leituras psicanalíticas. Mas pode ser algo mais. Uma premonição dos totalitarismos? O absurdo opressor dos regimes ditatoriais sem habeas corpus? Joseph K. é processado sem provas do crime (que crime?) e é condenado sem motivo. Kafka escreve uma fábula sombria ou tem uma premonição? Quem escreve as leis? Quem determina o certo e o errado? Quem castiga?

A instância de julgamentoquem determina? Que determina o poder de julgar? O Estado? Mas quem (o que) é o Estado? Quem pode dizer algo em nome do Estado? O que é a 'representatividade'? O quanto esta 'representa' uma pretensa 'voz coletiva'? A 'voz coletiva' não é criada pela propaganda? E a propaganda não serve às classes dominantes? O 'crime', assim, depende de quem o define como 'crime'. Subitamente, ser democrata pode ser crime. Ou ser gay ou judeu pode ser motivo para condenação.

Interessante em 'O Processo', os acusados são considerados 'belos'!É um estranho fenômeno, que podemos ver cientificamente... Não deve ser a culpa que os deixa belos... Nem o castigo que desde agora embeleza-os... Deve ser o processo contra eles, que deve revesti-los”. Como se os acusados fossem superiores aos cidadãos comuns, que sequer são lembrados nem mesmo para sofrerem processos!

Mas, perguntamos, esperanças de 'absolvição'? Ao menos para quem escreve? Novamente folheamos o ensaio de W. Benjamin,

O mundo mítico, à primeira vista próximo do universo kafkaniano, é incomparavelmente mais jovem que o mundo de Kafka, com relação ao qual o mito representa uma promessa de libertação. Uma coisa é certa: Kafka não cedeu à sedução do mito.

Ou seja, Kafka não se libertou ao criar fábulas ao estilo La Fontaine, nem contos encantados ao estilo de Andersen, nem narrativas dignas de Homero e Esopo. É antes um drama de incompletitude, pois “O mundo de Kafka é um teatro do mundo. Para ele, o homem está desde o início no palco.Podemos pensar se uma conexão (ou influência) com o teatro de B. Brecht, assim como reconhecido no 'teatro do absurdo' (ver Beckett e Ionesco)

Ainda W. Benjamin sobre a obra de Kafka,

Se perceberá que toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação simbólica não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor; eles recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências. (inMagia e técnica, artes e política. Brasiliense, 1987. p. 146)

Para Benjamin, a criação literária de Kafka pode ser lida como 'parábola' e citá-las com 'fins didáticos'.Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar parábolas. Mas ele não se esgota nunca nos textos interpretáveis e toma todas as precauções possíveis para dificultar essa interpretação.” (p. 149)

Mas que não se exagere, a ponto de presumir pretensões de Kafka em ser moralista religioso, fabulista com intenções teológicas, pois "Kafka não era adivinho nem fundador de religiões." e "Kafka também compunha parábolas, mas não fundou nenhuma religião"

Ainda que para o crítico literário H. Bloom 'espiritualidade' em Kafka ( "Mas o melhor do Kafka fragmentário - contos, parábolas, aforismas - vai além de Proust e Joyce, armando-nos com uma espiritualidade que de modo algum depende de crença ou ideologia."), e reconhecendo que "Não teofanias em Kafka", e que certamente "Kafka não foi um santo ou um místico." (BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. 1994. trad. Marcus Santarrita)

Ele (Kafka) é um grande aforista, mas não um simples contador de histórias, a não ser em fragmentos e nos contos muito curtos que chamamos de parábolas. Suas narrativas mais longas -Amerika,O ProcessoeO Castelo- são melhores em partes do que como obras completas; seus contos mais longos, mesmoA Metamorfose, começam de um modo mais intenso do que tendem a acabar. Além de seus aforismas e parábolas, as mais fortes fantasias de Kafka são narrativas curtas ou fragmentos (...)

Bloom permite-se divagar em questões metafísicas além de alegóricas. A pensar: cabala em Kafka? Ou um 'gnosticismo judeu'? Kafka um judeu descrente com auto-ódio judeu? Vive uma 'teologia negativa'?

Kafka fala por e para vários leitores, gentios e judeus, que se afastaram de Freud por recusar-se a encarar a religião como uma ilusão, mas concordam com Kafka em que nasceram tarde demais para afirmar a validade, para eles, das tradições cristãs e judaicas.

A admiração de Bloom é visível, Kafka : “fantasista de gênio quase único”, que é inalcançável por sua genialidade, que não vai nos redimir, Certamente o Tribunal e o Castelo não podem abençoar, mesmo que o desejassem, o que é improvável.

No mais, Bloom defende que a cada leitor de Kafka uma interpretação que o satisfaça ou inquiete - Kafka não legitimará nenhuma das interpretações. Assim como poderemos falar numa interpretação correta? Como atingiremos a 'intenção autoral'? Seria mesmo possível ?

O que argumentamos, pensando junto com o pensador judeu-alemão, é a possibilidade de uma pluralidade de visões, conduzindo a várias interpretações. dois mal-entendidos possíveis em relação a Kafka: recorrer a uma interpretação natural e a uma interpretação sobrenatural. As duas, a psicanalítica e a teológica, perdem de vista o essencial.” (W.B, p. 152)

É possível uma leitura sociológica, onde aparecem as burocracias opressivas e inacessíveis, simbolizando as autoridades que estão acima do cidadão; assim como é possível uma leitura marxista onde as autoridades apenas executam as vontades das classes dominantes para manter o domínio sobre os trabalhadores.

Também uma leitura existencialista onde se imagina um panorama da condição humana dominada por forças que desconhece; bem como uma leitura psicanalítica onde a autoridade paterna é sufocante e impossível de ser contentada, assim como o cidadão jamais agrada plenamente às autoridades.

A pluralidade de interpretações é também defendida pelo autor argentino Jorge Luís Borges, quando menciona a singularidade de Kafka,

Na Alemanha e fora da Alemanha, se hão esboçado interpretações teológicas de sua obra. Não arbitráriassabemos que Kafka era devoto de Pascal e Kierkegaardporém tão pouco são úteis. O pleno gozo da obra de Kafkacomo o de tantas obraspode anteceder a todas as interpretações e não depender delas.” (em “Titãs da Literatura. El Ateneo. RJ, SP, 1956.

'O Processo' (a obra que merece nossa atenção aqui) caracteriza por uma atmosfera de opressão e culpa. Uma culpa constante que crucifica o acusado. Eis o Processo onde a punição é o próprio processo! Entre o crime e o castigo, temos a culpa. Desde o início a culpa (segundo H. Bloom):Kafka parece ter entendido que a culpa, em Shakespeare, não pode sofrer dúvida e precede todos os crimes reais.

Ou segundo W. BenjaminNo espelho da culpa, que o mundo primitivo lhe apresentou. Ele (Kafka) viu apenas o futuro, sob a forma do tribunal. Como representar este tribunal? Seria o julgamento final ? O juiz não se converte em acusado? A punição não está no próprio processo? Kafka não respondeu a essas perguntas. (...)” (p. 154)

Um Processo que não chega a um veredicto, que se arrasta de instância a instância, entre hierarquias inalcançáveis, é em si-mesmo uma punição suficiente, como percebeu o pensador alemão,O adiamento é em O processo a esperança dos acusadoscontando que o procedimento judicial não se transforme gradualmente na própria sentença.” (p. 154)

Para Benjamin, Kafka desejou a queima dos manuscritos por considerar o 'fracasso'. Outros autores argumentam que Kafka escrevia apenas para si mesmo, não para uma carreira literária (afinal, sentiria culpa por seguiria tal carreira, não desejada pela família).



continua...


jul/ago/12


Leonardo de Magalhaens



 


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