segunda-feira, 1 de outubro de 2012

sobre 'Pé na Estrada' / On The Road - de Jack Kerouac - P1



Sobre ' na Estrada' (On The Road, 1951;1957)
do escritor e poeta Jack Kerouac (1922-1969)
(tradução de Eduardo Bueno / 1984)

Testemunho da vida em movimento

parte 1

A poesia Beat


O movimento Beatnik (ou geração Beat) representou um momento de contestação e espontaneidade em plena consonância com a geração pós-guerra, a mesma geração que proclamaria uma 'Contracultura', uma subversão da civilização e uma libertação da libido. Com a grande potência norte-americana em destaque, não é de se admirar que no seio dos próprios EUA surgisse um grupo de literatos e poetas engajados (ou não) em contestação contra o poderio hegemônico da nova potência.

Graças às traduções e releituras críticas de Cláudio Willer, graças à tradução de On The Road feita pelo entusiasta Eduardo Bueno (ou Peninha), o movimento Beatnik teve acolhida e influência nos poetas e literatos brasileiros a partir dos anos 1970principalmente na chamada 'poesia marginal' e na nova poética surrealista (em contraponto ao concretismo). Com vinte anos de atraso, mas finalmente os poetas brasileiros podem receber a influência Beat. Os poetas da geração 60 em São Paulo são um exemplo. O nome de Roberto Piva se destaca ao lado de Willer, juntamente com Roberto Bicelli e Antonio Fernando de Franceschi, segundo se apresenta no livro-reportagemOs Dentes da Memória. (1)

Os poetas beatniks mostram uma variedade de estilos e dicções, estão ao lado do ritmo (da batida, 'beat') quanto da 'beatitude' (no sentido de plenitude de viver, não de resignação ou mortificação piedosa) mas enquanto característica geralse podemos mesmo falar em 'movimento'temos o fato de se tem duas coisas que todos odeiam são MORALISMO e HIPOCRISIA. Estão disposto a apregoar uma 'Contracultura'e estamos falando dos EUA pós-guerracom a guerra na Coreia e as intervenções militares na América Central, e depois nas selvas do Vietnamanos 60 e 70.

São poetas que desconfiam da civilização (Kultur) ocidental, suspeitam da racionalidade (ou dita 'racionalidade instrumental' (2)) e admiram a cultura orientalprincipalmente a placidez budistae idolatram o irracionalismo, o surrealismo, o xamanismo, o ecologismoem suma, as raízes expressivas da Contracultura.

O movimento beatnik buscava uma purificação dos sentidos mais do que um 'desregramento de todos os sentidos' (nas palavras do poeta francês Rimbaud), buscava mais uma liberdade interior do que uma libertinagem. Não é culpa dos autores Beat que o desregramento e a libertinagem tenham dominadoe não a purificação e a liberdade (abstratos para os 'não-eleitos')

O amor pela natureza é visível na maioria dos autores Beats – por influência de Thoreau e Whitman, em harmonia com os hipsters ou hippiesque até hoje tem influência cultural-midiáticavejamos o belo filme 'Into the Wild' (no Brasil: Na Natureza Selvagem) quando um jovem ouve o 'chamado da natureza' (tal qual nos livros de Jack Kerouac, e antes, de Jack London)



(2)O conceito de 'racionalidade instrumental' está em Adorno & Horkheimer,A Dialética do Esclarecimento, publicado em 1950. Ambos participaram da Escola de Frankfurt que atuava na crítica social, incluindo pensadores como Walter Benjamin e Herbert Marcuse.


Além de Claudio Willer, outros literatos se debruçaram sobre as interferências e influências dos autores Beat, quando agiam na cultura através de uma pregação de 'contracultura', quando denunciavam com ironia e iconoclastia os imperialismos de poder e consumo na nova potência norte-americana que surgia das cinzas dos conflitos mundiais. A importância dos autores Beat é ressaltada pelo poeta, tradutor e crítico literário Rodrigo Garcia Lopes que até fala em “revolução nas letras e na cultura norte-americanas”,

Impossível falar de contracultura sem mencionar Irwin Allen Ginsberg (1926-1997) e os melhores escritores associados à geração beat (como seus gurus, William Burroughs e Jack Kerouac, ou ainda Gary Snyder, Lawrence Ferlinghetti e Gregory Corso). Os beats foram responsáveis por fazer uma revolução nas letras e na cultura norte-americanas, com impactos até nossos dias. Com exceção da chamada language poetry (anos 1970), nenhuma outra formação poética norte-americana afetou com tanta virulência a paisagem literária desde a Segunda Guerra Mundial. Os beats tiraram a poesia dos gabinetes sisudos (onde mofavam sob o espectro de T. S. Eliot e o modernismo classicizante danova crítica) e botaram-na na rua, tornando-a viva, para os vivos, novamente. Ginsberg e seus comparsas ganharam proeminência na segunda metade dos anos 1950, com obras que representavam uma reação ao formalismo então dominante nas letras. Eram tempos de conformismo, prosperidade econômica, caça aos comunistas, racismo e pobreza espiritual, representados pelo consumismo desenfreado do American Way of Life.



Também interessante e informativo o ensaio de R. Garcia Lopes sobre a presença e obra do poeta Michael McClure, no centro da 'Renascença Cultural' em San Francisco, em meados dos anos 1950, atuando sobre letras e comportamentos,

Uma das principais figuras do movimento Beatfenômeno literário e contracultural que agitou o cenário norte-americano nos anos 50 e 60 mas que continua em alta por o poeta, dramaturgo e ensaísta Michael McClure, cuja obra permanece inédita no Brasil, é tido por críticos importantes como o mais respeitável porta-voz de sua geração.

Seja através de peças polêmicas como The Beard, ou em performances e poemas que celebravam a natureza e novas formas de percepção, a liberdade sexual e a expansão da consciência, seja atacando a farsa do "sonho americano" e as convenções da poesia "poeticamente correta" da época, ele foi uma espécie de catalizador e agitador cultural do ambiente da chamada Renascença Cultural de San Francisco, servindo de ponte entre músicos, poetas e pintores. Como disse o ator Dennis Hopper, "sem a presença de McClure, o rugir dos anos 60 teria sido um miado". Recuperando uma tradição libertária da poesia norte-americana, (Whitman, Thoreau), mas atento às experimentações e incorporando a filosofia e a cultura pop em sua poesia, McClure e seus parceiros conseguiram reacender nos jovens da época o interesse pela poesia e pela ação, influenciando comportamentos e preparando o terreno para os turbulentos e loucos anos 60.

Segundo a lenda, McClure serviu de inspiração para seu amigo de noitadas Jim Morrison, que via no poeta mais velho um modelo para a sua interferência como poeta pop-xamânico, tendo McClure apresentado o vocalista do Doors à obra de Blake e Artaud. McClure também excursionou com Bob Dylan, montou uma banda de rock com um "Hell Angels" e deixou sua marca na música pop como o autor de um dos maiores sucessos de Janis Joplin, "Mercedes Benz".


Mais info / links

crônica de Contardo Calligaris sobre On The Road

sobre a tradução / divulgação dos Beatniks no Brasil
livroAlma Beat

trecho do livro 'Alma Beat'
(Eduardo Bueno sobre W Whitman)


Voltando às origens, os autores Beat absorveram os mestres do século anterior, que estavam além de sua época, principalmente Whitman e Thoreau. Aliás, a influência de Henry Thoreau sobre os Beatniks, segundo Eduardo Bueno, em ensaio no livroAlma Beat,
Os beats amam Thoreau, e Kerouacao abandonar a Columbia Universityparece ter tomado ao da letra uma das muitas frases antológicas deste ultra rebelde:Quanto mais ar e luz solar em nossos pensamentos, tanto melhor.


No mais, o fascínio da estrada e da vida andarilha não é novidade na época dos Beatniks, segundo Bueno, pois outros literatos se inspiraram em suas andanças e viagens, em terra e mar,

Portanto (e isso sem citar os naturalistas, caminhantes e escritores John Muir e John Burroughs, o super ídolo beat Jack London, o desertor de navios baleeiros Herman Melville, o jornalista revolucionário John Reed, o implacável assassino de animais selvagens Ernest Hemingway e centenas de outras estrelas norte-americanas com um ou uma gota de sangue na estrada), quando os beats arrombaram a cena literária na América, a estrada estava longe de ser uma novidade. Antes deles, porém, ela nunca fora tão importante no ato da criação artística. A não ser talvez, no Japão dos séculos XVI e XVII.

Personagens

A maioria das personagens das obras praticamente autobiográficas de Kerouac são baseadas em personalidades que viveram no mundo cultural e compartilharam livros e amizades, ao longo das décadas de 1950 e 1960, e alguns ainda hoje vivem e escrevem (vejam as atuações de Ferlinghetti e McClure). As personagens de On The Road também aparecem em outras obras de Kerouac, que integram sua 'Lenda de Duluoz', um ciclo de narrativas de poesia e viagens, tais comoThe Dharma Bums(1958; no Brasil : 'Os Vagabundos Iluminados', trad. Ana Ban),The Subterraneans(1958),Big Sur(1962),Desolation Angels (1965; 'Anjos da Desolação', trad. Guilherme da Silva Braga, 2010)eVisions of Cody(escrito em 1951-52, publicado postumamente), sempre com nomes fictícios, pseudônimos que lembram de algum modo as pessoas reais, os amigos e as amigas, na maioria poetas, literatos e artistas. Tal estratégia contornava uma dos questionamentos dos editores, que se recusavam a usar nomes de personalidades reais nas obras.

Assim Kerouac é Sal Paradise em On the Road (OR), Ray Smith em Dharma Bums (DB), Jack Duluoz em Big Sur (BS), Desolation Angels (DA) e Visions of Cody (VC), e Leo Percepied em The Subterraneans (TS). Do mesmo modo, Cassady é Dean Moriarty em OR, Leroy em TS, Cody Pomeray em DB e BS; Ginsberg é Carlo Max (OR), Alvah Goldbook (DB), Irwin Garden (BS, DA, VC), e Adam Moorad (ST). Gary Snyder não aparece em On the Road, mas é amigo do protagonista em Dharma Bums , e é chamado Jarry Wagner em BS e DA.

W. Burroughs aparece em OR como o excêntrico Old Bull Lee, mas é Frank Carmody (em TS) e Bull Hubbard (em DA) . Gregory Corso aparece em DA como Raphael Urso, e Yuri Gligeric em TS. O poeta e editor L. Ferlinghetti é renomeado Larry O'Hara (em TS) e Lorenzo Monsanto (em BS). M. McClure é nomeado Ike O'Shay em DB, e Pat McLear em BS, o Patrick McLear de DA. Em DB temos Philip Whalen como Warren Coughlin, Phillip Lamantia como Francis Da Pavia (em DA é David D'Angeli), Peter Orlovsky é George em DB e Simon Darlovsky em DA.

O poeta e crítico Kenneth Rexroth é o Rheinhold Cacoethes em DB. W. C. Williams aparece com o nome de Dr. Williams em DA, e Norman Mailer tem o nome de Harvey Marker em DA, enquanto Gore Vidal está em TS sob o nome Arial Lavalina.

Esta maneira de narrar sobre pessoas reais usando pseudônimos, nomes fictícios para personagens reais, é característica do roman à clef (algo como 'romance com chave') onde se procura mascarar para não identificar, não ofender os amigos e inimigos. É um recurso usado por outra obra Beat, considerado o primeiro romance ao estilo Beatnik, de John Clellon Holmes (1926-1988),Go(1952), onde Jack Kerouac aparece com o nome de Gene Pasternak, e Cassady como Hart Kennedy, Burroughs como Will Dennison, Ginsberg como David Stofsky, e o próprio Holmes como Paul Hobbes. E Holmes, por sua vez, aparece emOn the Road,The SubterraneanseVisions of Cody, com os nomes Ian MacArthur, Balliol Macjones e Tom Wilson, respectivamente.

O termo 'beat' como referência aos autores andarilhos e alucinados, que desejavam ser 'literatos', passou a ser divulgado por outros jovens autores da época, tais como Herbert Huncke e John C. Holmes, que usam esta palavra ambígua, que podia ser referir ao ritmo de jazz, ao ser meio derrotado na vida, ou ao desejo de beatitude, assim os beats pretenderiam se tornar beatos. Outros apontam uma influência Beat no nome da famosa banda britânica The Beatles (seria beat + beetles?), mas Paul McCartney lembra que beat se refere apenas a batida rítmica da bateria.

Linguagem

Esta criação de palavra é uma das características da obra, uma vez que encontramos fartos exemplos de trocadilhos, aliterações, onomatopeias, uso e abuso de fala coloquial, com gírias urbanas, além de sotaques regionais, tudo numa tentativa de comunicar o experienciado, de desabafar no papel, em escrita fluída, espontânea, o que foi vivenciado, como num diário a testemunhar exaltações e frustrações. Cada personagem tem uma visão de mundo e linguajar, e os tradutores precisaram usara as gírias e coloquialismos brasileiros para recriar a atmosfera informal e até marginal das falas.

Assim temos soluções em nosso contexto brasileiro para as falas coloquiais norte-americanas, como bem mostra alguns exemplos encontrados pelo tradutor,aí, eu caí fora('then I went away'),é isso aí, homem, assim que se fala('that's right, man, now you're talking'),sacando tudo('digging everything'),cagando pra tudo isso / pouco ligando('he didn't care one way or the other'),tudo o que queria era cair fora('and I wanted to take off'),chovia a cântaros('the rain came down in buckets'),caranga envenenada('scarf flying'),não puderam me estrepar / me fuder('put no flies on my ass'),o negócio é não esquentar a cabeça('the thing is not to get hung-up '),minha cuca 'tá zumbindo('my head rings'),estava cagando para tudo('he didn't give a damn about anything'),não disse que seria uma curtição?('I told you it was kicks'),vamos curtir(let's go hit'),qual é o rolo, a parada, a negociata('and what's the pitch?'),à put que os pariu('to go to hell'),porra!('ah, hell!'),ora, não enche o saco('don't bother me, man!') dentre outros.

O uso e abuso de expressões coloquiais e gírias, e também 'palavrões', sem censuras, é movido pela necessidade de expressar o vivenciado, de despejar no papel as falas e gestos, sem modificar, sem embelezar, sem criar literatura de beletrismo, num jorro mais espontâneo que o autor julga mais verídico e autêntico. O impulso de relatar o que se vivenciou acaba por delegar a ficção ao mínimo, como se o autor estivesse gravando em microfone as falas e depois transcrevesse no papel. Por esse motivo, o autor revelara a amigos a vontade de abandonar a ficção, isto é, sua obra seria vivencial, pessoal, mesmo autobiográfica, não um exercício de criação de personagens e situações que jamais existiram.

Alguns ensaístas, entre eles C. Willer, lembram a influência de Céline (Louis-Ferdinand Céline, 1894-1961, autor francês) com sua obraVoyage au bout de la Nuit,Viagem ao Fim da Noite, de 1932, onde a fluência da narrativa se aproxima da fala, da linguagem coloquial, com gírias e ofensas, com imagens céleres da vida urbana, com um narrador-personagem, espécie de anti-herói, que apresenta com ironia suas vivências onde predominam o desconforto, a desesperança e o niilismo. Willer, em seu ensaioJack Kerouac e o primeiro On The Road, pontua as influências sobre o jovem autor beat,

Kerouac viajou para realizar o que escrevia e o que havia lido: viagens intra e intertextuais. Pegou a estrada para reverter o tempo e retornar às origens, tentando refazer, entre outros, os registros da impossível recuperação do passado de Proust (autor de cabeceira, dele e de Cassady) e de outro prosador-viajante, Thomas Wolfe; a poesia de longo curso de Whitman, poeta itinerante; a prosa de Dostoiévski, com sua religiosidade, sua mística do submundo e, principalmente, sua escrita paroxística; e do francês Louis-Ferdinand Céline, o autor de Voyage au bout de la nuit (algo comoviagem ao fim da noiteouao fundo da noite), que vejo como a matriz ou influência mais forte em On the Road, principalmente após a leitura de sua primeira versão; isso, pelo modo como Céline rompeu com o beletrismo francês ao fazer prosa oral e introduzir a língua falada em sua narrativa.



Viagens

As viagens são o assunto de On The Road, que registra as vivências nas estradas e nas cidades, nos hotéis e nas casas de amigos e amigas pelo território norte-americano e também no mexicano. As andanças e as aventuras entrelaçam os amigos que comungam um estilo de vida mais espontâneo, mais libertário, mais contra-caretice possível, numa sociedade que idolatra a competição e a guerra ao mesmo tempo em que prega o comodismo e o consumo.

Com o dinheiro do 'velho seguro de veterano', Kerouac decide se arriscar na estrada, para encontrar os amigos no outro lado da América, na Costa Oeste, muito menos 'careta' que a Costa Leste, de tradicionalismo puritano típico da Nova Inglaterra. A busca do inesperado, do inusitado, do desconhecido, eis o que motiva o viajante,em algum lugar ao longo da estrada eu sabia que haveria garotas, visões e muito mais; na estrada, em algum lugar, a pérola me seria ofertada.

Tudo começa com a presença elétrica de Neal Cassady que é chamado de Dean Moriarty, uma figura que é central por sua maneira de encarar o mundo e propor fugas da mesmice cotidiana que o apavora. Ele é um delinquente juvenil mas ao mesmo tempo um místico. É um drogado mas é também um visionário que eletriza os amigos e seduz as amigas, e compartilha adrenalina e beatitude (no melhor sentido beat) . O estopim é aqui aceso quando Cassady conhece Allen Ginsberg, ou antes, Moriarty conhece Carlo Max,

E foi nessa noite que Dean conheceu Carlo Marx. Algo verdadeiramente extraordinário aconteceu quando Dean conheceu Carlo Marx. Duas cabeças iluminadas como eram, eles se ligaram no primeiro olhar. Um par luminoso de olhos penetrantes relampejou ao cruzar com dois outros olhos penetrantes e luminososo santo trapaceiro de cuca brilhante, e o angustiado poeta vagabundo com ideias sombrias, que é Carlo Marx. Daquele momento em diante quase não vimais Dean, e fiquei um pouco triste também. As energias deles se fundiram com uma precisão exata, e eu era somente uma cópia malfeita, incapaz de acompanhar o ritmo deles. Começou então o louco redemoinho de tudo o que ainda estava por vir; este redemoinho acabaria misturando meus amigos e o pouco que restava da família numa gigantesca nuvem de poeira sobre a Noite Americana.(P1, cap. 1, trad. Eduardo Bueno)

O jovem narrador, numa época de perdas (a morte do pai, o fim do casamento) busca algo além, nos volteios da estrada, em plena descoberta do mundo, tece seu o elogio dos loucos, dos espontâneos, aqueles que 'sacam' a existências em suas potencialidades e vacuidades, sem hesitações e elucubrações, que vivem para o agora sem se apegarem às vãs cobiças, às promessas sedutoras da vida consumista,

Para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e jamais dizem coisas comuns mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhantepoppode-se ver um brilho azul e intenso até que todos 'aaaaaah!' “ P1, cap. 1

Because the only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars and in the middle you see the blue centrelight pop and everybody goes 'Awwwww'!

Na época em que 'caiu na estrada', Kerouac / Sal estava escrevendo uma novela, intitulada “The Town and the City” (escrita em 1947/48, publicada em 1950), onde Kerouac é Peter Martin, Ginsberg é chamado Leon Levinsky, e Burroughs é Will Dennison (o mesmo nome dado por J. C. Holmes em seu “Go”, de 1952), mas o autor ainda não se encontrara na 'prosa espontânea' como se revelaria na primeira redação de On The Road,

Chegou então a primavera, época ideal para cair na estrada, e todos, naquele bando disperso, começaram a preparar-se para algum tipo de viagem. Eu estava ocupadíssimo com minha novela, mas quando ela já estava pela metade, depois de uma viagem ao sul com minha tia para visitar meu irmão Rocco, senti que estava pronto para tomar o rumo do oeste pela primeiríssima vez na vida.

Dean já tinha caído fora. Carlo e eu fomos levá-lo à estação (...)” P1, cap. 1


Desde o início é importante notar o quanto é forte a influência na vida de Sal a presença de Moriarty, como um 'irmão' a estimular e inspirar como um companheiro de aventuras, como alguém a iluminar a jornada, a combinar juventude e experiência, que poderia fornecer conteúdo para boas histórias – reais, não ficcionais - que ainda faltavam ao escritor em formação,

Sim, eu queria conhecer Dean mais intimamente, não apenas porque eu era um escritor e precisava de novas experiências, ou porque minha vida de vagabundagem pelo campus tinha completado seu ciclo e já não significava mais nada, mas porque,de alguma forma, apesar de nossa profunda diferença de caráter, ele me fazia lembrar um irmão há muito esquecido; a simples visão de seu rosto ossudo e sofrido, de seu pescoço forte, musculoso e suado, evocava recordações da minha infância, naqueles depósitos de lixo sombrios e nas margens e poças do rio Passaic, em Paterson.” P1, cap. 1


Após a Segunda Guerra Mundial, num momento de perdas e descobertas, o autor-narrador decide 'deixar rolar' como um improviso de jazz na cadência dos embalos noite à dentro, das experiências com drogas e outros alucinógenos, quando na época a música que empolgava os jovens era o jazz acelerado no estilo bebop, como se sentia nas performances de Charlie Parker e Miles Davis, que logo despontaram como ídolos daquela geração,

O vento que vinha do lago Michigan, bop-jazz no Loop, longas caminhadas ao redor de South Halsted e North Clark e, na madrugada silenciosa, uma longa jornada pela selva de pedra, quando uma radiopatrulha me seguiu como suspeito. Nessa época, 1947, o bop enlouquecia a América. Os rapazes no Loop seguiam soprando,mas com um ar melancólico, porque o bop atravessava um momento indeciso entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era, que começou com Miles Davis. E,enquanto eu ouvia aquele som noturno que o bop representava para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação, e em como todos eles viviam frenéticos e velozes, dentro dos limites de um único e imenso quintal.P1, cap. 3


A experiência de despersonalização (' não sabia quem eu era') na vida em movimento, na estrada, no percorrer das distâncias que nos afastam de nossos hábitos de cotidianos repetitivos, assim fora das situações padrões para levar a novas percepções, que provocam o temor, assim como todas as experiências novas, todas as ações-e-reações inusitadas,

Acordei com o sol rubro do fim de tarde; foi um dos momentos mais impressionantes de minha vida, o mais bizarro, pois simplesmente não sabia mais quem eraestava a milhares de quilômetros de minha casa, temeroso e desgastado pela viagem, num quarto de hotel barato nunca antes avistado, ouvindo o silvo das locomotivas e o ranger das velhas madeiras do hotel, e passos anônimos que ressoavam no andar de cima, e todos aqueles sons melancólicos, e por quinze misteriosos segundos realmente não sabia quem era. Não me apavorei; simplesmente eu me sentia como se fosse outra pessoa, um estranho a mim mesmo, e toda a minha existência fora apenas uma vida mal-assombrada, a vida vazia de um fantasma. Eu estava no coração da América, meio caminho andado entre o leste da minha mocidade e o oeste de meus sonhos futuristas, e é provável que tenha sido exatamente por isso que tudo se passou assim, naquele entardecer dourado e insólito.P1, cap. 1

Em novas situações, para quem busca descobertas, ainda mais um homem jovem, é compreensível o desejo de se enturmar, de fazer amigos, de conhecer visionários e seduzir o 'belo sexo', assim não seria diferente com o narrador-personagem de On The Road, sempre em êxtase, sempre frenético por novidades,

Naquela tarde em Des Moines, para onde quer que olhasse, via inúmeros bandos de garotas lindíssimaselas voltavam para suas casas depois das aulas, agora eu não tinha tempo para pensamentos desse tipo, mas jurei que cairia na farra assim que chegasse a Denver. Denver! Carlo Marx estava lá, Dean,também; e, claro, Chad King e Tim Gray, que era a cidade natal deles; e também Marylou, e eu tinha ouvido falar de uma turma muito louca que incluía Ray Rawlins e Babe Rawlins, sua linda irmã loira; e as irmãs Bettencourt, duas garçonetes que Dean conhecia; e até Roland Major, um antigo colega com o qual eu me correspondia nos tempos da universidade, andava por também. Transpirando alegria antecipada,aguardava ansioso pelo meu reencontro com eles. Por isso, passei direto por aquelas lindas gatinhas: as garotas mais gostosas do mundo moram em Des Moines.” P1, cap. 3


Ao longo da narrativa não faltam relatos e descrições como se retratos da vida na estrada, do que acontece de possível e impossível, como se arrisca e como se vive perigosamente, pedindo carona, conhecendo cidadãos e cidadãs num país de dimensões continentais, de uma costa a outra, passando pelo Meio-Oeste, por cidades que vivem entre a pecuária e o jogo, entre a religiosidade e o entretenimento, numa multiplicidade de rumos, desvios, atalhos, vivida entre a empolgação e a embriaguez,

Acordei com uma tremenda dor de cabeça. Slim tinha se mandado — para Montana, acho. Saí à rua. E ali, no ar azulado, vi ao longe, pela primeira vez, os enormes cumes nevados das montanhas Rochosas. Respirei profundamente. Tinha de chegar a Denver de uma vez por todas. Mas primeiro tomei meu desjejum, bastante modesto: torradas, café e um ovo. O Festival do Velho Oeste prosseguia; havia um rodeio, e a baderna e a agitação estavam para começar outra vez. Deixei tudo para trás. Queria encontrar a rapaziada em Denver. Cruzei uma passarela sobre a estrada de ferro, e cheguei a um monte de barracos onde duas estradas se bifurcavam, sendo que ambas conduziam a Denver. Peguei a que ficava mais próxima das montanhas,assim poderia olhar para elas enquanto seguia meu rumo. Ganhei uma carona instantânea com um moço de Connecticut, que viajava num calhambeque, pintando; era filho de um editor do leste. Ele falava e falava; eu estava enjoado do porre da véspera e da altitude. Em determinado momento, quase tive de pôr a cabeça para fora da janela. Mas, quando ele me largou em Longmont, no Colorado, eu já estava me sentindo bem melhor, e até começava a lhe contar a respeito de minhas viagens. Ele me desejou boa sorte.” P1, cap. 5

Como um neófito da estrada, Kerouac está sempre dependendo dos guias que apontam rumos, que já conhecem as voltas e desvios, que viajaram na estrada e nas visões, sejam alucinadas ou poéticas, entre as tentativas de amizades sinceras, onde a admiração de Sal Paradise pelo amigo Dean Moriarty é visível e contagiante, da mesma forma que admiramos Sherlock Holmes pelo retrato que encontramos na narrativa do Dr. Watson, que vive as aventura ao lado de seu mestre 'biografado',

Dean e eu embarcamos juntos numa viagem incrível. Estamos tentando nos comunicar sobre absolutamente tudo o que passa pela nossa cabeça, com a mais completa sinceridade. Tivemos que tomar benzedrina. Sentamos sobre a cama, comas pernas cruzadas, frente a frente. Finalmente, expliquei a Dean que ele é capaz de fazer tudo o que quiser, tornar-se o prefeito de Denver, casar com uma milionária ouse transformar no maior poeta desde Rimbaud. Mas ele continua correndo pelas ruas para curtir aquelas malucas corridas de autorama. Eu vou junto. Ele grita e pula, excitado. Você sabe, Sal, Dean continua ligado nessas coisas. — Marx meditou sobre o assunto, e disse do fundo da alma: — Hmmm. E qual é o programa? — perguntei. A vida de Dean era repleta de programas.” P1, cap. 7


É interessante encontrar as personagens da vida real aqui numa narrativa que às vezes parece tão insólita pela empolgação de quem narra. Assim quando conhecemos Allen Ginsberg, aqui Carlo Marx, em sua morada em Denver, como o poeta que deixou seus versos 'uivarem' na leitura de Howl / Uivo na Six Gallery, em 07 de outubro de 1955, no centro da cidade da famosa ponte Golden Gate, o que provocou a chamada Renascença de San Francisco, tal como também é narrada em “Vagabundos Iluminados” (The Dharma Bums), quando os novos poetas deixam transbordar a espontaneidade e a fala ritmada como numa poética-existencial jam session, em protesto contra as repressões e falsa prosperidade a mundo pós-guerra.

O apartamento subterrâneo de Carlo ficava na Grand Street, numa velha pensão com tijolos à vista, próxima a uma igreja. Nós nos enfiamos num beco, descemos uns degraus de pedra, abrimos uma tosca porta de madeira e penetramos numa espécie de porão, até chegarmos a uma porta de madeira compensada. Parecia o quarto de um santo russo; a vela acesa, a cama, paredes de pedras úmidas e uma espécie de ícone maluco que ele próprio havia feito. Recitou seus poemas para mim. Um se intitulavaA depressão de Denver. Certa manhã, Carlo acordou e escutoupombos vulgaresgrasnando do lado de fora de seu cubículo, viutristes rouxinóisencurvando os galhos, que lhe fizeram lembrar a mãe. Um manto cinzento encobriu acidade. As montanhas, as magníficas Rochosas, que se podia ver de qualquer lugar, a oeste da cidade eram feitas de papier-maché. O universo inteiro estava demente, absurdo e extremamente estranho. Ele descrevia Dean comoo menino do arco-íris, perturbado e atormentado em sua agonizante priapice. Referia-se a ele como oEddie Édipo, forçado a raspar chicletes das vidraças.P1, cap. 8

É a atmosfera da agitação, da descoberta que impulsiona em ritmo animado a fala narrativa, que deseja abarcar tudo, sentir tudo, como bem desejava Walt Whitman em suas odes, suas enumerações e descrições, como bem reconheceu o Álvaro de Campos (uma das personas de Fernando Pessoa) que se perde e se encontra em volteios de sensações, fluxos e refluxos de contradições, que se expressam em versos longos, cheios de fôlego, de ânsias, de gritos (que podem ser uivos ao estilo de Ginsberg), para dispor baixo todo o edifício da vida padronizada das tradições e caretices imperantes.

Gargalhadas retumbavam, vindas de todos os lados. Eu me perguntava o que o Espírito das Montanhas estaria pensando, e olhei para cima e vi pinheiros ao luar, fantasmas de velhos mineiros, e fiquei assombrado. Em todo o sombrio lado leste da cordilheira, reinava o silêncio e o sussurro do vento, exceto na ravina onde berrávamos; do outro lado da cordilheira, viam-se o grande talude ocidental e o imenso platô que se prolongava até Steamboat Springs, baixando depois em direção ao deserto do leste do Colorado e para o deserto de Utah; tudo agora envolto pela escuridão, enquanto gritávamos e enlouquecíamos em nosso retiro montanhoso, americanos loucos e bêbados numa terra majestosa. Estávamos no topo da América, e tudo o que podíamos fazer era gritar, acho euatravés da noite, em direção ao leste, sobre as planícies onde provavelmente, em algum lugar, um velho de cabelos brancos estava caminhando com o Verbo em nossa direção, e chegaria a qualquer momento e nos faria calar.P1, cap. 9


Para vivenciar tudo e experimentar todas as sensações é preciso romper tabus, o que incomoda a sociedade que se baseia em direitos e deveres, permissões e proibições. toda uma dificuldade de atingir uma sexualidade plena e reconfortante numa civilização de tabus, como bem apontou Freud (em sua obraMal-Estar na Civilização, 1930) ou Wilhelm Reich (em seuA Revolução Sexual, 1936) ou Herbert Marcuse (em seuEros e Civilização, 1955),

Garotas e rapazes da América têm curtido momentos realmente tristes quando estão juntos; a artificialidade os força a se submeterem imediatamente ao sexo, sem os devidos diálogos preliminares. Nada de galanteios – mas sim um profundo diálogo de almas, pela vida que é sagrada e cada momento precioso. Ouvi os sons da locomotiva de Denver a Rio Grande ecoar nas montanhas. Quis seguir ainda mais longe atrás de minha estrada.” P1, cap. 10

Temos as impressões que arrebatam o protagonista-narrador quando se percebe na paisagem e na euforia de San Francisco, onde mil diversões se prometem, miríades de estímulos golpeiam o jovem ávido de conhecer e participar, pronto a se entregar às seduções da cidade grande, bem menos 'careta' que aquelas da Nova Inglaterra,

Rodopiei até ficar tonto, pensei que cairia direto no precipício, como num sonho. Ah, onde está a garota dos meus sonhos? Pensei nisso olhando para todos os lados, como vivia olhando naquele pequeno mundo de baixo. E, à minha frente, derramava-se a rústica vastidão côncava e complexa do meu continente americano; em algum lugar, muitos quilômetros além, a louca e deprimida Nova York erguia aos céus sua nuvem poeirenta e seus vapores acinzentados. algo cinzento e sagrado no leste, enquanto a Califórnia é clara como roupa no varal, e tem a mente vaziapelo menos, era assim que eu pensava naquela época.P1, cap. 11


O narrador-viajante logo percebe que ter o pé na estrada é preciso aceitar as aventuras e desventuras, as alegrias e os riscos ao viver em movimento numa sociedade padronizada, onde cada um tem seu lugar determinado, num sistema de divisão de trabalho, hierarquizado a ponto de cada um apresentar um dado status social, onde a renda determina a 'qualidade' do cidadão. Estar à margem deste sistema, desafiar as ordens classificatórias é se arriscar a subsistência e sobrevivência,

Naquela noite em Harrisburg, tive de dormir num banco da estação ferroviária; ao amanhecer, o chefe da estação me enxotou. Não é verdade que se começa a vida sob as asas do pai, feito uma criança singela que acredita em tudo? Então, chega o dia em que o cara se descobre um desgraçado, um infeliz, fraco, obscuro e nu, e coma aparência de um fantasma fatigado e fatídico, avançando trêmulo pelos pesadelos da vida. Arrastei-me para fora da estação, desfigurado. Eu estava fora de mim. Daquela manhã, tudo o que eu podia perceber era sua própria palidez, como a palidez de um túmulo. Eu estava morto de fome, (...)” P1, cap. 14


Este é o retorno para a casa, o cotidiano, depois de percorrer doze mil quilômetros até a Costa Leste, perceber-se em Nova York, onde Sal Paradise / Kerouac encontra o sossego do lar materno, onde a paz quase budista é um reconforto para a escrita do que se vivenciou.


continua...


set/12


Leonardo de Magalhaens

 




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