sexta-feira, 21 de junho de 2013

sobre A Náusea - obra de Jean-Paul Sartre - parte 1





Sobre “A Náusea” (La Nausée, 1938)
do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980)


Quando a Literatura explicita uma existência nauseante


parte 1

Aqui continuamos nossa saga através das obras que apresentam o indivíduo, a voz subjetiva, diante de uma sociedade, um mundo, em sua coletividade e objetividade. São vozes demasiadamente pessoais que atuam deslocadas num contexto de época ou classe, e que denunciam a coisificação do ser humano e das relações sociais. Ao destoarem das vozes circundantes, os deslocados, ou flutuantes, ou outsiders, conseguem explicitar o que não se desvela a quem segue a 'ordem unida' da conformidade.

Mas como já vimos em “Demian” - quando abordamos “O Lobo da Estepe”, de H. Hesse - e veremos em “O Estrangeiro / O Estranho”, de A. Camus, há algo mais que a narrativa, há um desejo de discutir questões filosóficas que incomodam tanto os autores quanto os leitores. A identidade, a consciência, a razão para viver, a expressão de sentimentos pessoais, a confissão de culpas (reais ou imaginárias), eis alguns eixos temáticos que impulsionam os textos, sempre a buscarem alguma cumplicidade com quem se anima a ler.

Aqui em A Náusea, publicado em 1938, adentraremos o universo da Filosofia existencialista do francês Jean-Paul Sartre, pensador e ativista, autor também de O Ser e o Nada (L'être et le Néant, 1943), obra filosófica, pensada durante a Segunda Guerra Mundial, quando o filósofo foi prisioneiro dos alemães nazistas, e escreveu mais romances existencialistas (a trilogia “Os Caminhos da Liberdade”: A Idade da Razão, Sursis, e Com a Morte na Alma) que ajudaram a divulgar que “o existencialismo é um humanismo”, em diálogo com os marxistas e os humanistas (católicos ou ateus).


Mais sobre o existencialismo sartreano


Mas falemos de literatura. Antoine Roquetin, o narrador-protagonista de A Náusea, lembra muito o tipo psicológico do narrador-protagonista Paul Hilbert do conto “Erostrato” de Sartre (publicado no volume intitulado “O Muro”, Le Mur, 1939), cujo enredo é basicamente tecido em torno de um cidadão amargurado e misantropo, que marca sua passagem pelo mundo pelo niilismo e autodestruição, tal qual o incendiário grego famoso por ter destruído o templo de uma deusa.

Tanto em Erostrato quanto em A Náusea, é tematizado o “se deus não existe, tudo é permitido” (em “Os irmãos Karamázov”, de Dostoiévski), onde o ser humano está só, no sentido de que tudo é recriado e justificado pela ação humana, pois não há 'lei divina', então os humanos precisam criar as leis, daí a angústia da responsabilidade, ao não esperar mais a 'intervenção divina'.

Pois a vida não tem sentido, é uma gratuidade. É preciso inventar um sentido para se viver. “Dar sentido à própria vida”, segundo o filósofo iconoclasta Friedrich Nietzsche (1844-1900), é quando, ao percebermos que não há um Sentido dado por uma Transcendência, ou Divindade, passamos a inventar um sentido para nossas existências – criar novas leis – e evitar a queda no misticismo ou seguir um 'sentido' dado pelos líderes, sejam os espirituais ou os temporais, sejam as autoridades, os especialistas, os ditadores, os padres, os reverendos, os escritores de auto-ajuda, os pensadores, os santos.


Relendo La Nausée agora no original, os aspectos estilísticos se destacam mais, a simplicidade dos diálogos, as frases feitas, em relação às meditações filosóficas-metafísicas sobre a consciência. Ousei fazer a tradução das citações para melhor 'me apropriar' do texto, conseguir me orientar nessa tessitura de digressões de um protagonista errante que vive a escrever em seu diário as suas impressões. “O melhor seria escrever os acontecimentos dia a dia” (“Le mieux serait d'écrire les événements au jour le jour.” p. 11) Mas por que escrever? Ele precisa, pois quer relatar, colocar ordem no que vive, num tédio que progressivamente o domina. É o que denomina 'a náusea'. O que será? A náusea advém se perceber-se mais uma 'coisa' entre coisas, um corpo a perambular por aí (a carregar uma alma consciente?), pois é comum coisificar-se os outros, seus corpos e suas palavras, mas assumir-se enquanto coisa é difícil.


Acho que é perigo se ter um diário: se exagera tudo, fica à espreita, se força continuamente a verdade” (“Je pense que c'est le danger si l'on tient un journal: on s'exagere tout, on est aux aguets, on force continuellement la vérité.” p. 11)

Acho que sou eu mesmo quem tem mudado: é a solução mais simples. Também a mais desagradável. Mas enfim eu devo reconhecer que estou sujeito à estas transformações súbitas.” (“Je crois que c'est moi qui ai changé: c'est la solution la plus simple. La plus désagréable aussi. Mais enfin je dois reconnaître que je suis sujet à ces transformations soudaines.” p. 16)

Terça-feira, 30 de janeiro. Eu vivo sozinho, inteiramente só. Não converso com quem quer seja, nunca; eu nada recebo, e nada entrego.” (“mardi 30 janvier: Moi je vis seul, entièrement seul. Je ne parle à personne, jamais; je ne reçois rien, je ne donne rien.” p. 19)

Na maioria das vezes, por falta de se ligar às palavras, meus pensamentos ficam nevoentos. Eles esboçam formas vagas e agradáveis, se engolfam : assim logo esqueço todos.” (“La plupart du temps, faute de s'attacher à des mots, mes pensées restent des brouillards. Elles dessinent des formes vagues et plaisants, s'engloutissent: aussitôt, je les oublie.” p. 19)


Não apenas de Roquetin a obra vem tratar em suas 200 páginas. Outros figurantes aparecem, com destaque para dois, o cidadão que lê na biblioteca pública, como forma de auto-instrução, que recebe aqui a alcunha de 'Autodidata'; e uma esperada mulher com a qual o protagonista teve um relacionamento frustrado, a enigmática Anny. Esta mulher só reaparecerá no final da obra – ou diário, ao qual temos acesso (Mas como conseguimos este diário? Será que Roquetin o publicou?!) - enquanto o estudioso é um contraponto constante, como paródia e como figura de desprezo.

O Autodidata (Ogier P.) espera a autoridade externa, “Mas eu desconfio tanto de mim mesmo; seria preciso ter lido tudo.” (“Mais je me défie tant de moi-même; il faudait avoir tout lu.” p. 56) Aliás, o Sr. Ogier é aquele que se 'educa' por ordem alfabética, com autores de A a Z, de um autor a outro autor, passando por assuntos os mais diversos, tudo ao almejar um 'conhecimento universal' (como se fosse possível ler a Enciclopedia Brittannica de A a Z.)

O estudioso é um humanista, daí ressurgir aqui a questão do Humanismo, se é possível amar o Ser Humano enquanto entidade abstrata, e não reconhecê-lo no próximo – amar a Humanidade, mas desprezar o vizinho, o operário na rua, odiar o patrão no serviço, etc. Afinal, o humanista ama o Homem idealizado, que ele deseja de certo modo – caso contrário, vem o desprezo, o “inferno são os outros” (frase do próprio filósofo-escritor em sua peça “Entre quatro paredes”, Huis Clos , de 1944).


Enquanto não observa a cidade de Bouville e seus pacatos habitantes, Roquetin lê e escreve na Biblioteca pública, concentrado em concluir a biografia de um certo excêntrico Sr. de Rollebon, dado às intrigas políticas e palacianas. Entre leituras, narrativas, dados biográficos, para ele não é estranho que a própria vida veja vista enquanto uma narrativa. Mesmo de uma vida comum. “Quando se vive, nada acontece. As cenas mudam, as pessoas entraram e saem, eis tudo.” (“Quand on vit, il n'arrive rien. Les décors changent, les gens entrent et sortent, voilà tout.” p. 62) Contudo a narrativa pode criar o extraordinário.

Aqui eis o que pensei: para que um acontecimento mais banal se torne uma aventura, é preciso e é suficiente que se comece a narrá-lo. É o que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de estórias, vivem em torno de suas estórias e pelas estórias dos outros, vê tudo o que ocorre através delas; e procura viver sua vida como se a recontasse [narrasse]. (“Voici ce que j'ai pensé: pour que l'événement le plus banal devienne une aventure, il faut et il suffit qu'on se mette à le raconter. C'est ce qui dupe les gens: un homme, c'est toujours un conteur d'histoires, il vit entouré de ses histoires et les histoires d'autrui, il voit tout ce qui lui arrive à travers elles; et il cherche à vivre sa vie comme s'il la racontait.” pp. 61-62)



Lembramos que é possível uma distinção entre 'História' (History) com H maiúsculo, no sentido de factual, documental, e 'estória' (story) no sentido de ficcional, imaginário. “Eis o que é o viver. Mas quando se narra a vida, tudo muda; apenas uma mudança na qual ninguém repara: a prova é que se fala de estórias reais. Como se pudesse haver estórias reais; os acontecimentos acontecem de um jeito e são narrados de modo inverso.” (“Ça, c'est vivre. Mais quand on raconte la vie, tout change; seulement c'est un changement que personne ne remarque: la preuve c'est qu'on parle d'histoires vraies. Comme s'il pouvait y avoir des histoires vraies; les événements se produisent dans un sens et nous les racontons en sens inverse.” p. 63)


“Mas é preciso escolher: viver ou narrar.” (“Mais il faut choisir: vivre ou raconter.”) ou seja, enquanto se vive, não se narra; apenas pode-se narrar depois de vivenciado, daí termos os memoralistas. Mas Roquetin quer registrar o momento, o vivido, exatamente no mesmo instante – ele ouve uma música e passa a descrevê-la, e suas reações emocionais. Mas enquanto ele narra, sabe que tudo se modifica (“Ça, c'est vivre. Mais quand on raconte la vie, tout change.”), o que se vivenciou, já passou, é lembrança.


Mas Roquetin desconfia das narrativas, e da Literatura, a tessitura de factual e ficcional, tal como o eu lírico de Carlos Drummond de Andrade em “Elegia 1938”, “A literatura estragou tuas melhores horas de amor”, que deixa de aproveitar o momento ao observar-se para narrar. Além do mais, para quem o protagonista escreve? Para si mesmo, pois seu diário é uma válvula de escape, uma forma de manter a sanidade. Daí a necessidade de ser espontâneo, não um literato exibicionista. (Vejamos o 'contrato ficcional' aqui: o Leitor tem acesso a um diário, não a um romance...)

Não preciso fazer frases. Escrevo para deixar claro certas circunstâncias. Desconfiar da literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras. (“Je n'ai pas besoin de faire des phrases. J'écris pour tirer au clair certaines circonstances. Se méfier de la littératture. Il faut écrire au courant de la plume; sans chercher les mots.” p. 85)


É preciso viver, experimentar, e não narrar. O conhecimento se apreende pelo vivenciado, não pelo absorvido dos livros. Ainda que tenha-se um delay (um atraso) entre o experimentado e o percebido – quando só se tem as lembranças, meras sombras das emoções – a ponto de se pensar que o vivido foi lido, “Tudo o que sei da minha vida, parece-me que tenho aprendido nos livros.” (“Tout ce que je sais de ma vie, il me semble que je l'ai appris dans des livres.” ) Roquetin é um homem sem aventuras, e ele o sabe, “Não tive aventuras” (“Je n'ai pas eu d'aventures.”), pois em sua vida nada há de extraordinário, afinal,

Enfim, eu tinha imaginado que em certos momentos minha vida podia adquirir uma qualidade rara e preciosa. Sem necessidade de circunstâncias extraordinárias: exigia apenas um pouco de rigor. Minha vida presente nada tinha de brilhante: mas de tempo em tempo, por exemplo quando se tocava música nos cafés, eu me recordava e me dizia: outrora, em Londres, em Meknes, em Tóquio, conheci momentos admiráveis, eu tive aventuras. Eis o que me é tirado. Percebo, bruscamente, sem razão aparente, que tenho mentido a mim mesmo por dez anos. As aventuras estão nos livros.” (“Enfin je m'étais imaginé qu'à de certains moments ma vie pouvait prendre une qualité rare et précieuse. Il n'était pas besoin de circonstances extraordinaires: je demandais tout juste un peu de rigueur. Ma vie présente n'a rien de très brillant: mais de temps en temps, par exemple quand on jouait de la musique dans les cafés, je revenais en arrière et je me disais: autrefois, à Londres, à Meknès, à Tokio j'ai connu des moments admirables, j'ai eu des aventures. C'est ça qu'on m'enlève, à présent. Je viens d'apprendre, brusquement, sans raison apparente, que je me suis menti pendant dix ans. Les aventures sont dans les livres.” p. 59)


Enquanto se narra, se re-elabora o vivenciado, o tempo escorre, se esvai, o “famoso escorrer do tempo” (“ce fameux écoulement du temps”) que corrói a vida, que nos afasta de nós mesmos – um eu-de-hoje em relação a um eu-de-ontem e um eu-de-amanhã – pois “cada instante se aniquila, que não vale a pena tentar retê-lo, etc” (“chaque instant s'anéantit, que ce n'est pas la peine d'essayer de le retenir, etc”), contudo o que faz Roquetin? Ele não retem o instante, mas o conserva enquanto narrativa – ele registra o momento e o que sentiu, e eis o relato que temos (e do qual ele desconfia!) Pois inevitavelmente o tempo passa, e a consciência bem o sabe! “Alguma coisa começa por findar: a aventura não se deixa alongar; ela não tem sentido senão por sua morte.” (“Quelque chose comence pour finir: l'aventure ne se laisse pas mettre de rallonger; elle n'a de sens que par sa mort.” p. 60)

No mais, a vida não está nos livros! Tudo o que está descrito, já está anestesiado, congelado. Quando se tem a emoção não se narra – daí a inutilidade da psicologia na escrita, mera simulação. “Não passava de psicologia. Igual a que se faz nos romances.” (“C'était tout juste de la psychologie, comme on em fait dans les romans.” ) Se a vida é vazia e sem sentido, pelo menos poderíamos valorizá-la com 'momentos perfeitos', a obsessão de Anny, sabendo que o tempo passa, foge, tempus fugit, e é um desejo febril o de congelá-lo em retratos, em fotografias emocionais, em momentos únicos, excepcionais, daí rememoráveis. Um amor avassalador, uma paisagem, uma sinfonia ouvida ao crepúsculo, tudo se constitui em singularidades meio às banalidades.

Eu me inclino sobre cada segundo, tento desgastar todos; nada passa que eu não perceba, que eu não fixe para sempre em mim, nada, nem a ternura fugaz desses belos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade indecisa do aurora: e no entanto o minuto se escorre e eu não o retenho, gosto que passe assim.” (“Je me penche sur chaque seconde, j'essaie de l'épuiser; rien ne passe que je ne saisisse, que je ne fixe pour jamais en moi, rien, ni la tendresse fugitive de ces beaux yeux, ni les bruits de la rue, ni la clarté fausse du petit jour: et cependant la minute s'écoule et je ne la retiens pas, j'aime qu'elle passe.” p. 60)


Roquetin com medo da loucura, além da solidão , do viver sem amigos, “Quando se vive só, nem se sabe mais o que é isso de narrar: a verossimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos.” (“Quand on vit seul, on ne sait même plus ce que c'est que raconter: le vraisemblable disparaît en même temps que les amis.” p. 20) que pode culminar na perda da identidade, “Então é isso que me espera? Pela primeira vez me entedia estar só. Desejaria falar com alguém sobre isso que me afeta antes que seja tarde demais, antes que eu aterrorize os meninos. Gostaria que Anny estivesse aqui.” (“Est-ce donc ça qui m'attend? Pour la première fois cela m'ennuie d'être seul. Je voudrais parler à quelqu'un de ce qui m'arrive avant qu'il ne soit trop tarde, avant que je ne fasse peur aux petits garçons. Je voudrais qu'Anny soit là.” p. 22)

O narrador do diário mostra o quanto está entediado com o seu biografado (M de Rollebon), sendo que a escrita da biografia é o que dá sentido a vida do deslocado narrador, “Mas, agora, o homem... o homem começa a me entediar. É ao livro que eu me atenho, sinto uma necessidade cada vez mais forte de escrever – à medida em que envelheço, diria.” (“Mais, maintenant, l'homme... l'homme commence à m'ennuyer. C'est au livre que je m'attache, je sens un besoin de plus en plus fort de l'écrire – à mesure que je vieillis, dirait-on.” p. 27) Ele questiona a biografia versus o romance, a ficcionalização – o quanto a vida é espontânea? O quanto M. Rollebon é real? O quanto é verossímil? “Tenho a impressão de fazer um trabalho de pura imaginação. Ainda estou bem certo que as personagens de romance teriam um ar mais real, seriam, em todo caso, mais agradáveis.” (“J'ai l'impression de faire un travail de pure imagination. Encore suis-je bien sûr que des personnages de roman auraient l'air plus vrais, seraient, en tout cas, plus plaisants.” p. 28)


Destaca-se aqui o contemplar-se: é possível o Eu definir-se? Como se detém diante da própria face? “Eu nada entendo desta face. Aquelas dos outros têm um sentido. Não a minha. Eu não posso mesmo decidir se é bela ou feia.” (“Je n'y comprends rien, à ce visage. Ceux des autres ont un sens. Pas le mien. Je ne peux même pas decider s'il est beau ou laid.” p. 32) mas está presente o perigo da introspecção, o mergulho em si-mesmo que pode levar ao desgosto, a náusea, “um quarto de hora bastaria, estou certo, para que tivesse o supremo desgosto comigo mesmo.” (“un quart d'heure suffirait, j'en suis sûr, pour que je parvienne au supreme degôut de moi.” p. 29)

Pois o ser humano vivem sociedade, no convívio com o outro, ponto de apoio e motivo de desgosto. É através do outro que o eu toma consciência de si mesmo, percebe-se numa relação de alteridade. Sem o outro o eu não pode nem qualificar a própria aparência – acostuma a ser considerado belo ou feio de acordo com as apreciações externas. Sozinho, como ele se julga? Será belo ou feio? Que padrões terá além daqueles dados socialmente? Veja-se os critérios da moda, sempre fugaz. Pois bem, ele não sabeo que dizer da própria face! E se indaga se “As outras pessoas têm tanta dificuldade de julgar a própria face?” (“Est-ce que les autres hommes ont autant de peine à juger de leur visage?” p. 33

Talvez seja impossível entender a própria face. Ou talvez seja por que sou um homem solitário? As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver, nos espelhos, tal como elas aparecem aos amigos. Eu não tenho amigos: será por isso que minha carne é tão desnuda? É de se dizer – sim, diria a natureza sem os seres humanos.” (“Peut-être est-il impossible de comprendre son propre visage. Ou peut-être est-ce parce que je suis un homme seul? Les gens qui vivent en société ont appris à se voir, dans les glaces, tels qu'ils apparaissents à leurs amis. Je n'ai pas d'amis: est-ce pour cela que ma chair est si nue? On dirait – oui, en dirait la nature sans les hommes.” p. 34)

Neste quadro de solidão, de introspecção, não é de se espantar se ela surge, a crise existencial, denominada a Náusea, que está nele e em tudo, “Assim a Náusea me dominou. Deixei-me cair no banco, nem sabia mais onde eu estava; eu via girar lentamente as cores ao meu redor, tinha vontade de vomitar. Pois é: depois a Náusea não me abandonou, ela me sujeitou.” (“Alors la Nausée m'a saisi. Je me suis laissé tomber sur la banquette, je ne savais même plus où j'étais; je voyais tourner lentement les couleurs autour de moi, j'avais envie de vomir. Et voilà: depuis, la Nausée ne m'a pas quitté, elle me tient.” p. 35) e também: “A Náusea não está em mim: eu a percebo lá na parede, nos suspensórios, em tudo ao meu redor. Ela não faz mais que um todo com o café, sou eu quem está nela.” (“La Nausée n'est pas em moi: je la ressens là-bas sur le mur, sur les bretelles, partout autour de moi. Elle ne fait qu'un avec le café, c'est moi qui suis em elle.” p. 36)

A arte, a música, a simples canção de jazz consegue dissolver a crise existencial, a Náusea, “A Náusea se desvaneceu. De súbito: […] ao mesmo tempo a duração da música se dilatava, se inflava como uma tromba. Ela preenchia a sala com sua transparência metálica, a esmagar contra as paredes nosso tempo miserável. Estou na música.” (“La Nausée s'est évanouie. D'un coup: […] En même temps la durée de la musique se dilatait, s'enflait comme une trombe. Elle emplissait la salle de sa transparence métallique, em écrasant contre les murs notre temps misérable. Je suis dans la musique.” p. 40)


Consciente, Roquetin quer escrever espontâneo, sem literatura. Mas exibe trechos líricos, com matiz literária “A Náusea ficou lá, na luz amarela. Estou contente: esse frio é tão puro, tão pura esta noite; não sou eu mesmo uma onda de ar gélido? Não ter sangue, nem linfa, nem carne. Escorrer por esse longo canal em direção àquela palidez lá. Não ser exceto frio.” (“La Nausée est restée là-bas, dans la lumière jaune. Je susis heureux: ce froid est si pur, si pure cette nuit; ne suis-je pas moi-même une vague d'air glacé? N'avoir ni sang, ni lymphe, ni chair. Couler dans ce long canal vers cette pâleur là-bas. N'être que du froid.” p. 45)

Ou quando fala do tempo, “Eu nem distinguo mais o presente do futuro e no entanto tem duração, ao se realizar pouco a pouco; a velha avança na rua deserta; ela desloca suas grossas sandálias masculinas. É este o tempo todo nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e quando vem, é de se estar entediado pois se percebe que já estava ali há muito tempo.“(“Je ne distingue plus le présent du futur et pourtant ça dure, ça se réalise peu à peu; la vieille avance dans la rue déserte; elle déplace ses gros souliers d'homme. C'est ça le temps tout nu, ça vient lentement à l'existence, ça se fait attendre et quand ça vient, on est écoeuré parce qu'on s'aperçoit que c'était déjà là depuis longtemps.” p. 51)

O escritor do diário passa seus momentos em perambulações ou acomodado entre os volumes da biblioteca, está entre imagens e textos, aprisionado por obsessões que desabrocham a qualquer momento, brotando da inconsciência. Tudo latente, a aflorar subitamente bastando um estímulo visual ou olfativo. Ele é cativo de suas próprias impressões – ser entre seres, coisa entre coisas. Suas leituras são apenas distrações, ele não leva à sério. Ele se diverte e julga os autores, tece considerações irônicas – enfim, desconfia do que lê, despreza os literatos. Despreza o humanista incauto ironicamente denominado Autodidata, que ainda acredita que a cultura melhora o homem.

A distinção eu-de-hoje com o eu-de-ontem, a lacuna temporal que separa ser que viveu e o ser que narra, “Mas eu não vejo mais: tenho vasculhado o passado e nada retiro mais que os destroços de imagens e eu não sei mais o que representam, nem se são recordações ou ficções.” (“Mais je ne vois plus rien: j'ai beau fouiller le passé je n'en retire plus que des bribes d'images et je ne sais pas très bien ce qu'elles représentent, ni si ce sont des souvenirs ou des fictions.” p. 53.)


Em muitos casos os próprios destroços desapareceram: apenas restam as palavras: ainda poderia narras as estórias, narrar todas muito bem (em anedota eu não temo ninguém, salvo os oficiais da marinha e os profissionais), mas não passam de carcaças. Tratam de um sujeito que fez isso ou aquilo, mas não sou eu, nada tenho em comum com ele.” (“Il y a beaucoup de cas d'ailleurs où ces bribes elles-mêmes ont disparu: il ne reste plus que des mots: je pourrais encore raconter les histoires, les raconter trop bien (pour l'anecdote je ne crains personne, sauf les officiers de mer et les professionnels), mais ce ne sont plus que des carcasses. Il y est question d'un type qui fait ceci ou cela, mais ça n'est pas moi, je n'ai rien de commun avec lui.” p. 53)


Sem ter uma produtiva e satisfatória vida própria, Roquetin perambula a observar as vidas dos outro, os jogadores no bar, os casais nos modestos boulevards, os pequenos dramas, as autoridades nos passeios dominicais, os frequentadores de museus, os que vivem cotidianamente, medianamente, sem sobressaltos, sem náuseas, enquanto ele segue e sempre deslocado não sabe o que fazer da própria existência. Ele se deixa a observar e criticar ironicamente os transeuntes, com suas vestes e faces, suas poses e hierarquias, descrente da ordem social que não passa de aparência e inércia.

Ela, a multidão, era mais misturada do que pela manhã. Parecia que todos aqueles homens não tivessem mais a força de sustentar esta bela hierarquia social, a qual, antes do almoço, eles eram tão orgulhosos. Os comerciantes e os burocratas andavam lado a lado; eles se encostavam, mesmo empurrar e deslocar-se por pequenos empregados de ares pobres. As aristocracias, as elites, os grupos profissionais se fundiam nessa multidão morna. Restavam apenas homens quase solitários, que não representavam mais.” (“Elle était plus mêlée que le matin. Il semblait que tous ces hommes n'eussent plus la force de soutenir cette belle hiérarchie sociale dont, avant déjeuner, ils étaient si fiers. Les négociants et les fonctionnaires marchaient côte à côte; ils se laissaient coudoyer, heurter même et déplacer par de petits employés à la mine pauvre. Les aristocraties, les élites, les groupements professionnels avaient fondu dans cette foule tiède. Il restait des hommes presque seuls, qui ne représentaient plus.” p. 78)


E Roquetin sempre deslocado, “Eu andava com passos de lobo, furtivo, nem sabia o que fazer com meu corpo duro e fresco, em meio a esta multidão trágica que repousava.” (“Je marchais à pas de loup, je ne savais que faire de mon corps dur et frais, au millieu de cette foule tragique qui se reposait.” p. 80) e suas meditações transitam entre a ironia e o tratado sociológico, enquanto ele se indaga, no seu embaçado humanismo, “Eu me perguntei, por um instante. Se eu não amaria os homens.” (“Je me demandai, un instant, si je n'allais pas aimer les hommes.” p. 81) pensa o angustiado Roquetin ao ver as multidões na avenida à beira-mar, enquanto se sente solitário meio ao coletivo, que tem identidade e estilo, enquanto ele indaga sobre tudo e sobre si-mesmo. Os outros têm conforto na conformidade, no viver grupal, ele nada tem. A conformidade gera comodidade, a vida de rebanho, sem ideias próprias, sem o peso da responsabilidade. “As ideias gerais são mais cômodas” (“Les idées générales c'est plus flatteur.” p. 102)


O escritor de diário se descreve, em sua condição solitária, de deslocado e desapegado das honras sociais, que todos buscam avidamente, para agregarem às suas identidades. Profissionais, autoridades, sacerdotes, todos esperam aplausos e honrarias. Tudo para o belo edifício social. Enquanto a Roquetin, é um homem sem rumos, talvez um anti-herói,

Sou sozinho, a maioria das pessoas adentram os seus lares, onde leem jornais e ouvem a rádio TSF. O domingo que finda tem deixado nelas um gosto de cinzas e o pensamento delas se volta para a segunda-feira. Mas não há para mim nem segunda-feira, nem domingo: existem os dias que se sucedem em desordem, e mais, de súbito, clarões como este.

Nada tem mudado e no entanto tudo existe de uma outra forma. Não posso descrever; é como a Náusea e no entanto é bem o contrário: enfim uma aventura me ocorre e quando eu me pergunto, eu vejo que me ocorre que sou eu e que estou aqui; sou eu que fendo a noite, estou contente como um herói de romance.

(“Je suis seul, la plupart des gens sont rentrés dans leurs foyers, ils lisent le journal du soir em écoutant la T. S. F. Le dimanche qui finit leur a laissé un goût de cendre et déjà leur pensée se torne vers le lundi . Mais il n'y a pour moi ni lundi ni dimanche: il y a des jours qui se poussent en désordre, et puis, tout d'un coup, des éclairs comme celui-ci.

Rien n'a changé et pourtant tout existe d'une autre façon. Je ne peux pas décrire; c'est comme la Nausée et pourtant c'est juste le contraire: enfin une aventure m'arrive et quand je m'interroge, je vois qu'il m'arrive que je suis moi et que je suis ici; c'est moi qui fends la nuit, je suis heureux comme un héros de roman.” p. 82)


É atordoante, para o narrador do diário, e para nós, os leitores desprevenidos, a extrema noção de si-mesmo e do que está ao redor, sincronicamente no mundo, o ser pensante no contexto do existir, em algum lugar em relação a todos os lugares, com sua vida disposta em paralelo com outras tantas vidas,

Sigo adiante. O vento traz até mim um grito de sirene. Estou só, mas eu marcho como uma tropa que adentra uma cidade. Existem, neste instante, navios ressonantes de música sobre o mar; as luzes se acendem em todas as cidades da Europa; os comunistas e os nazistas atiram uns nos outros nas ruas de Berlim, os desempregados perambulam pelas ruas de Nova York, as mulheres, diante de suas penteadeiras, num quarto morno, aplicam rímel nos cílios. E eu estou aqui, nesta rua deserta, e cada disparo de uma janela de Neukölln, cada soluço sangrado dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e modesto das mulheres que se enfeitam correspondem a cada um de meus passos, a cada pulsar de meu coração. (“Je repars. Le vent m'apporte le cri d'une sirène. Je suis tout seul, mais je marche comme une troupe qui descend sur une ville. Il y a , en cet instant, des navires qui resonnent de musique sur la mer; des lumières s'allument dans toutes les villes d'Europe; des communistes et des nazis font le coup de feu dans les rues de Berlin, des chômeurs battent le pavé de New York, des femmes, devant leurs coiffeuses, dans une chambre chaude, se mettent du rimmel sur les cils. Et moi je suis là, dans cette rue désert, et chaque coup de feu qui part d'une fenêtre de Neukölln, chaque hoquet sanglant des blessés qu'on emporte, chaque geste précis et menu des femmes qui se parent répond à chacun de mes pas, à chaque battement de mon coeur.” p. 83)



fonte: SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris, Gallimard, 1938.



continua …



jun/13


Leonardo de Magalhaens





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