Sobre
A Consciência de Zeno [La coscienza di Zeno, 1923]
trad.
Ivo Barroso [2001]
do
autor italiano Italo Svevo [Ettore Schmitz, 1861-1928]
A
irônica voz do narrador sempre a se analisar
parte 1
Assim
como já abordamos em obras já lidas e analisadas, aqui no Meu
Cânone Ocidental, a saber O Grande Gatsby, de Scott
Fitzgerald, e Lolita, de Vladimir Nabokov, o nosso olhar se
detêm mais sobre quem narra a história do que exatamente o que é
narrado, ou seja, nos interessa mais a figura do Narrador. Aqui uma
voz em 1ª pessoa a se debruçar sobre si mesmo, e aqueles ao redor,
olhando para o passado, rememorando a infância, os conflitos
familiares, até suas relações com o médico psiquiatra, para quem
escreve estas notas (estas que nós, os leitores, agora acessamos).
Temos
uma narrativa de uma vida, e, mais do que isso, um olhar sobre a vida
que é narrada. Realmente algo de proustiano aqui (como bem
explicitava o narrador Humbert em Lolita)
com as imagens do passado revistas sob uma perspectiva de um narrador
mais maduro, mais próximo da finitude. Logo
no Prefácio
somos informados que o romance resulta de uma sugestão do Doutor S.,
um psicanalista, ao seu paciente, o Sr. Zeno Cosini, para que este
faça um relato de sua vida, com suas memórias, e possa atingir
assim uma cura. O que não acontece, e somente sobrou a obra escrita,
cheia de comentários e surpresas, que ora nos é oferecida para que
o “leitor se aborreça”.
Em
seguida, no Preâmbulo, já percebemos que a voz narrativa é
a de um homem com mais de sessenta anos, a lançar um olhar para seu
passado, “Rever a minha infância? Já lá se vão mais de dez
lustros, mas minha vista cansada talvez pudesse ver a luz que dela
ainda dimana, não fosse a interposição de obstáculos de toda
espécie, verdadeiras montanhas: todos esses anos e algumas horas de
minha vida.” [p. 9] O tema da velhice, do olhar de maturidade
já estava explícito, desde o título, na obra anterior de Svevo, a
Senilidade (de 1898), onde um certo cansaço, um certo
distanciar-se da vida é perceptível em quem narra.
Mas
escrever para que? Para se analisar, para se descrever, para
averiguar erros e acertos. “O médico com quem falei a esse
respeito disse-me que iniciasse meu trabalho com uma análise
histórica da minha propensão ao fumo! - Escreva! Escreva! O que
acontecerá, então, é que você vai se ver por inteiro.” [p.
11] Ao escrever, o narrador de depara consigo mesmo, com seus vícios,
constantes vícios,
Todas
essas coisas jaziam em minha consciência ao alcance da mão. Só
agora ressurgem, porque não sabia antes que pudessem ter
importância. Mas com isso já registrei a origem do hábito
pernicioso e (quem sabe?) talvez assim esteja curado. Para
certificar-me, vou acender um último cigarro, que talvez atire fora
em seguida, enojado. [p. 12]
Eis
um narrador ambíguo, que detesta o vício que o aprisiona, sempre
promete a si mesmo abandonar o fumo, mas sempre volta ao vício, a
prometer ser o 'último cigarro'. Será auto-engano ou ironia
mesmo? Por que ele se promete o que não pode cumprir? Afinal, o
vício é maior do que ele ! Assemelha-se a um viciado que diz 'só
mais um gole' e, aos poucos, bebe a garrafa toda!
Como
se ele fizesse uma auto-análise, sob um prisma freudiano, o
narrador Zeno expõe seus medos, inseguranças, suas fantasias, seu
temor diante da figura do pai, seus relacionamentos com as mulheres,
a prisão do vício, seus momentos trágicos ou risíveis. Assim a
morte do pai doente, a escolha da esposa, o internamento na tentativa
de deixar o fumo, os negócios com o sogro, a vida afetiva dividida
entre a esposa e a amante, os novos negócios com o cunhado.
Episódios de sua vida que são narrados-analisados como numa sessão
de terapia, com sua autoconsciência irônica em digressões e
lembranças.
Logo
de início, inseguro quando a própria sanidade, Zeno se submete a um
psiquiatra apenas para conseguir um certificado de que não é
louco! Indeciso, ele estuda direito, para em seguida trocar por
química, para depois voltar ao direito. Consciente do vício, Zeno
odeia o fumo, mas sofre por ser incapaz de abandonar os cigarros.
Entre as filhas do seu parceiro de negócios, ele não sabe qual
escolher para esposa.
Ele
analisa a própria vida, agora que nada mais pode mudar, apenas ser
descrito e revisto com um olhar de maturidade, onde um eu-de-hoje
enuncia julgamentos sobre um eu-de-ontem.
A
ciranda do último cigarro começou aos vinte anos e ainda hoje está
a girar. Minhas resoluções são agora menos drásticas e, à medida
que envelheço, torno-me mais indulgente para com minhas fraquezas.
Ao envelhecermos, sorrimos da vida e de todo o seu conteúdo. Posso
assim dizer que, desde há algum tempo, tenho fumado muitos cigarros
… que não serão os últimos. [p. 15]
e
“Agora
que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: não me teria
apegado tanto ao cigarro para poder atribuir-lhe a culpa de minha
incapacidade? Será que, deixando de fumar, eu conseguiria de fato
chegar ao homem forte e ideal que eu me supunha?” [p. 16]
…
No
mais, ele se debate na questão do prometer a si mesmo:
honraríamos a promessa? Um eu-do-futuro cumpriria as promessas
feitas por um eu-de-agora?
Para
atenuar-lhe a aparência ridícula, tentei dar um conteúdo
filosófico à enfermidade do último cigarro. Assume-se uma atitude
altiva e diz-se: 'Nunca mais!' Porém, o que é feito da atitude se
mantemos a promessa? Só podemos reassumi-la se renovamos o
propósito. Além disso, o tempo para mim não é essa coisa
insensata que nunca para. Para mim, só para mim, ele retorna. [p.
17]
Há
uma certa ironia, que se volta para o narrador, e suas relações com
os próximos, amigos ou desafetos. Há um denunciado jogo de
interesses, cada um a manipular os vícios do outro, assim para
conseguir cigarros ele não hesita em embebedar uma enfermeira, que
guarda a saída. Ele aposta com seu procurador : quem fumar primeiro
perde. Mas ele já sabe que perderá! Ele que se engana, fuma
escondido, a achar que engana o outro! Ele não é senhor do vício,
mas um escravo.
Por
que ele fuma tanto? Por que deseja abandonar o fumo tão
bruscamente? Bastaria que ele diminuísse gradativamente os cigarros.
Mas ele é incapaz de se controlar. Tal um bêbado que beberia um
frasco de perfume, ele fuma qualquer marca que lhe cai nas mãos.
Como poderá se curar? Se ele, ao menos, não sabotasse o processo de
cura... Ele vai se internar, mas não consegue vencer a ansiedade, a
insegurança, o ciúme. Assim ele é derrotado novamente pela
nicotina.
A
morte do pai, numa agonia longa e penosa, acaba por abater o
ensimesmado jovem, que o narrador recupera nessas páginas. Seu pai
morreu dez anos antes da aurora do turbulento século 20. O jovem
Zeno teve pouco contato com a mãe, morta quando ele era adolescente,
mas com o pai a relação foi diferente, mais próxima e mais tensa.
Ele superou a perda da mãe, mas a perda do pai foi uma 'verdadeira
catástrofe'. “Muitas vezes, ao pensar nisto, fico intrigado
pelo fato estranho de que essa desesperança quanto ao meu futuro só
se veio a produzir com a morte de meu pai, e não antes.” [p.
34]
A relação com pai é sempre fundamental para a perspectiva
freudiana, que centra a psicanálise num 'complexo de Édipo'
que gera admiração e competição entre pai e filho, para se
reafirmarem diante da figura da mãe. “Ele foi o primeiro a
duvidar de minha força de vontade e – ao que me parece – um
pouco cedo demais. Suspeito, embora sem apoio de uma convicção
científica, que duvidasse de mim pelo fato mesmo de ser seu filho, o
que contribui – e aqui com perfeita base científica – para
aumentar minha falta de confiança nele.” [p. 34]
O narrador Zeno não vê no pai o seu herói, alguém a ser admirado
e superado. Julga que o pai não é bom o suficiente. “Posso
dizer que eu representava a força e ele a fraqueza. O que venho
registrando neste relato já prova que em mim existe e sempre existiu
- talvez para minha maior desventura – um impetuoso impulso para o
melhor.” [p. 35] O narrador não hesita em julgar o pai, em
fazer desbotar sua imagem, mas percebe que agora, na maturidade,
muito se aproxima dele, “Agora que envelheço e me aproximo
daquele tipo de patriarca” [p. 35] com o diferencial da
consciência aguçada. O narrador vislumbra seu passado, está ciente
de seu presente, encara sua condição. “Em suma, comparado com
ele [o pai], eu
representava a força e às vezes penso que o desaparecimento daquela
criatura fraca, diante da qual eu me elevava, foi sentido por mim
como uma quebra de energia.” [p. 37]
A
doença tem um papel de aproximação e trauma. Zeno diante do pai
doente não tem alternativa senão abrir diálogo, tentar
reconciliação, diminuir os mal-entendidos. Zeno descobre-se fraco,
pouco resistente, até sugestionável, diante de um homem que
considera fraco, um homem que é seu pai, mas não o compreende. O
pai não tem confiança nele e assim, no testamento, delega a outro
homem a administração da herança do filho. Como se comportar
diante do pai adoentado? Como não sentir o constrangimento e a
culpa? A qual crença, a qual religiosidade, se apegar? Afinal, são
ambos tão diversos! “Ele evitava enfrentar o meu ceticismo: uma
luta difícil demais para ele naquele momento; eu, porém, esperava
poder atacá-lo suavemente de flanco, como convinha a um enfermo.”
[p. 41]
O
pai tem tanto a ensinar – por que o filho não se dispõe a
aprender? Há mesmo um choque de gerações? O filho descrente
diante do pai sapiente, eis aí o niilismo diante da tradição? Algo
que encontramos desde o romance Pais e Filhos [1861], de Ivan
Turgueniev [1818 -1883], com os filhos a se reafirmarem quando ousam
de negar as crenças paternas. O filho se encontra submisso diante do
fardo da experiência do pai, que é pesado, mas ultrapassado.
“[Ele] agora sentia menos a incapacidade de expressar-se, pois
até sorria ante a própria força, a própria grandeza. […]
Lisonjeava-me o afeto que demonstrava por mim, manifestando desejo de
transmitir-me a ciência de que se julgava possuidor, embora eu
estivesse convicto de que nada aprenderia como ele.” [pp.42-43]
Depois
da compaixão e do remorso, o narrador, agora velho, confessa que
julgou de modo desprezível o próprio pai. Agora, o narrador tem
também algo a que pode chamar 'experiência de vida'. “Hoje que
escrevo, depois de me haver avizinhado da idade que meu pai tinha
àquela época, sei por experiência que um homem pode ter a
consciência de possuir um elevado intelecto, mesmo quando essa
consciência é a única prova que tem isso.” [p. 43]
A
consciência! Sim, voltamos ao título da obra: a percepção
de si mesmo consigo mesmo, de estar-no-mundo, sendo um Eu rodado de
Outros, e de ser Eu justamente em relação aos Outros-Eus. O saber
de si vem de uma primordial Alteridade – o bebê que percebe
não ser o seio materno. A consciência de Zeno é ainda mais aguda
quanto mais sofrimento e falta de sentido ele percebe ao seu redor. A
doença e a agonia do pai é uma cena de tragédia narrada com
profundo senso de compassiva alteridade – sofre-se junto com
o sofredor. Sobra apenas o desespero, “Minha resistência
esmoreceu. […] fui
tomado de grande pavor.” [p. 45]
“Conservo
lembrança bastante nítida daquelas horas”
[p. 46] revela o narrador, e dá mostras de que sua memória é
detalhista. Uma memória constituída de momentos dolorosos, cenas de
agonia. Nem no leito de morte há reconciliação. O narrador quando
jovem não teve chance, a reprovação acompanha-o até o último
instante, até o último gesto do pai à morte. “Enquanto
escrevo ou quase gravo estas dolorosas recordações no papel,
descubro que a imagem que me obcecou desde a primeira tentativa de
perscrutar o passado, a locomotiva que arrasta uma série de vagões
ladeira acima, surgiu em meu espírito, ouvindo daquele sofá a
respiração de meu pai.”
[pp. 46-47]
O
pai sofre de edema e a agonia será longa, a cena é dramática, e a
memória traumatizada registra tudo em detalhes. “Meu primeiro
esforço para evocar o passado conduziu-me precisamente àquela
noite, às horas mais importantes da minha vida.” [p. 47]
Falas, gestos, olhares, remoroso, tudo num enorme painel do
sofrimento humano. Todo um sofrer que o médico, julgado 'pedante',
vê com olhares clínicos, profissionais. O narrador sente ódio por
esta medicina que não cura, mas prolonga a dor, mantém o paciente
vivo, em nome de uma esperança.
Hoje,
até mesmo aquele remorso desapareceu, juntamente com todos os outros
sentimentos de que falo aqui com a frieza de quem descreve fatos
ocorridos a um estranho. Em meu coração perdura apenas, desde
então, o sentimento de antipatia por esse médico que se obstina em
viver até hoje. [p. 51]
e
Já
agora, na noite passada, depois de haver estado boa parte do dia de
ontem entretido em evocar estas recordações, tive um sono tão
nítido, tão real, que me transportou de um salto, através do
tempo, àqueles dias. […] Parece que me agitei no sonho, pois fui
despertado por minha mulher. Sombras distantes! Creio que para vos
vislumbrar seja necessário um instrumento óptico, que inverte vossa
imagem. [p. 53]
A
experiência de velar junto ao agonizante causa um abalo emocional ao
jovem Zeno, que precisa cuidar do pai acamado e entender a situação
tão penosa. Uma irritação constante, um rancor, cresce em
ressentimento, a ponto de então causar remorsos. Terá ele sido um
bom filho? Por que o pai o reprovava até na hora da morte? “Ocorreu
então a cena de que jamais me esquecerei e que estendeu sua sombra
imensa para ofuscar toda a minha coragem, toda a minha alegria. Para
esquecer essa dor foi necessário que todos os meus sentimentos se
embotassem com o tempo.” [p. 57] O filho deveras dedicado evita
que o pai se levante, mas o pai não o perdoa, resiste e é capaz de
uma bofetada. É o último gesto, antes de cair morto. Não há mais
chance de perdão para o filho, que carregará o trauma – o gesto
final de seu pai não foi de agradecimento.
As
hesitações e inseguranças de Zeno se evidenciam também quando da
escolha da esposa. Três irmãs em idade de casamento são
apresentadas a ele, que se perde no labirinto das possibilidades. O
critério deverá ser beleza? Ou será estudo? Ou afinidade de
personalidade? Como escolher a mulher que o acompanhará? Deve ele
casar-se apenas para afastar a solidão e o tédio?
Minha
vida constituía-se de uma única nota, sem variações, certamente
alta e invejada por muitos, mas horrivelmente tediosa para mim. Meus
amigos dedicaram-se durante toda a vida sempre a mesma estima, e
creio que eu mesmo, a partir da idade da razão, não terei mudado
muito o conceito que fazia de mim.
Daí
talvez ter-me vindo a ideia de casar-me apenas pelo cansaço de
emitir e ouvir aquela mesma nota. [p. 61]
De
amigo a sogro, o Sr. Malfenti tem filhas casadouras que atraem a
atenção do jovem Zeno. São quatro irmãs – todas com a letra A –
sendo que uma ainda é criança. Cada um com certa beleza e
personalidades singulares. Mas qual será a escolhida? Como
mostrar-se amadurecido e atrair a admiração do sogro e de sua
família? O sogro passa a ser admirado e visto como um homem de
experiência. Está destinado a ser um 'segundo pai'? Sim, sendo
admirado, Giovanni Malfenti é uma figura de sucesso comercial a ser
referência para o jovem Zeno, em busca da carreira do lucro. O que
não impede que o sogro o 'passe para trás' algumas vezes nas
negociações.
Logo
o jovem Zeno é apresentado à família do Sr. Malfenti, que já
estava ciente dos estudos e sucessos do visitante. Um lar acolhedor
muito bem cuidado por uma mulher de homem de negócios. O narrador
revela que não se trata de um lar perfeito, pois o marido tem
relações extraconjugais, e a mulher, ciente, até consente. Tudo em
nome da instituição casamento. Em sua visita, Zeno conhece a
pequena Anna, a jovem Augusta, a adolescente Alberta, e a madura Ada.
Se o seu propósito é o casamento, o jovem precisa ser admirado pela
observadora Ada, a quem atribui seriedade e energia.
Zeno
tenta agradar a todas, ser um visitante espirituoso, atento as
palavras, principalmente de Ada, preocupada com a condição das
mulheres, que “falava com simplicidade, sem carregar nas cores,
alheia a qualquer intenção de nos maravilhar ou divertir.”
[p. 74], bem diversamente dele, que enfeita e floreia sua fala, até
exageradamente. “Eu apreciava essa maneira simples de narrar, já
que no meu caso era impossível abrir a boca sem desfigurar pessoas
ou coisas, pois de outra forma me parecia inútil falar. Sem ser
orador, sofria da doença da palavra. Para mim, a palavra devia ser
um acontecimento em si e por isso não devia ser aprisionada por
nenhum acontecimento.” [p. 74]
O
jovem Zeno tinha a mania de querer agradar aos outros, de copiar a
quem admira, de se adaptar ao interlocutor (como bem demonstram
alguns políticos e burocratas), para ser melhor aceito e, se
possível, ser amado. “É certo que senti, vagamente e logo de
início, que, para ser agradável a Ada, teria que me mostrar um
pouco diferente do que era; julguei que me seria fácil tornar-me o
ser que ela queria.” [p. 77] Ele passa a se comportar segundo
um propósito, atento a cada reação da futura noiva, “percebi
que Ada estava imbuída do desejo de não desagradar-me. Por isso
hesitava; mas todo o seu esforço não conseguia fazê-la vencer a
hesitação.” [p. 77], pois acha que ser divertido é ideal
para conquistar, “em geral a alegria me ajudava a fazer a boa
figura que me havia favorecido junto às mulheres.” [p. 77].
O
fato é que Zeno quer se casar, tem antes a motivação do que
exatamente a noiva. Não quer 'perder tempo' em procurar, ou em
esperar, como em 'romances de amor', antes tomar uma decisão e
concluir o assunto. Que é mais fácil ele se adaptar, do que esperar
a mulher ideal. Assim é melhor que ele se acostumasse a séria Ada,
com que quem ele tem o propósito de se casar. As outras jovens têm
talentos, gostam de música ou leituras. Mas não se encaixam no
propósito, além do que ele tece seus julgamentos (ao mesmo tempo em
que é julgado...) e só realiza o que agrada a possível noiva.
“Era a mulher que u havia escolhido, já portanto minha, e
adornei-a com todos os predicados para que o prêmio da vida me
parecesse mais belo.” [p. 79] Assim, não seguir rumo a mulher
ideal, mas idealizar a mulher que está acessível.
O
narrador, a olhar para a jovem versão de si mesmo, percebe o quanto
tal aventura é um tanto 'estúpida', motivada apenas pelo propósito
de casar-se. “Essa aventura, que foi a mais cândida de minha
vida, até hoje, já velho, recordo-a como se fosse a mais torpe.”
[p. 80] Ele não quer se declarar logo, antes agradar a escolhida, em
quem nota desdém. Ele confunde a idealização com a realidade a
ponto de se equivocar, pois a moça não manifesta interesse por ele.
Daí mais inferioridade, ao perceber que se enganara. Ele tenta ser
agradável, até compartilha seus pensamentos, suas lembranças, suas
aventuras, suas narrativas.
Ocorre
lembrarmo-nos com mais fervor do passado quando o presente adquire
uma importância especial para nós. Diz-se mesmo que os moribundos,
em seu último delírio, reveem toda a sua vida. O meu passado então
se agarrava a mim com a violência do último adeus, pois eu tinha a
sensação de afastar-me muito dele.” [p. 81]
O
insucesso de Zeno em desposar 'sua eleita' mostra o quanto ele é
idealizador e demasiado inseguro. Ele que idealiza o casamento,
idealiza a esposa, confiante na conquista, que se revela mero
devaneio. Em algum momento a moça lhe dera sinal positivo? A
amabilidade não seria antes cortesia, hospitalidade? Ele não sabe
se situar, o que pensar. Ele mesmo idealizara a mulher e agora sofre
com a recusa. Deverá renunciar ao casamento? “Sua recusa
mudaria a minha vida. E continuava a sonhar, confortando-me no
pensamento de que talvez aquela recusa representasse uma felicidade
para mim.” [p. 86]
Quais
as atitudes de um jovem viril disposto ao casamento? Mostrar
segurança e colher a admiração da noiva. Pois ela deve admirá-lo,
não casar apenas por interesse ou imposição familiar. Não basta
que ela aceite a proposta, mas deseje ser a escolhida. Por
outro lado, a família julga que o interesse dele visa outra –
que ele pode comprometer outra. Deve ele esclarecer tudo? Deve se
afastar da família? De parar de querer ser cortês e agradável?
Assim: o que todo mundo vê que ele não consegue ver? Qual
das irmãs seria a sua noiva?
Zeno
tem sempre seus propósitos, os quais não cumpria. Sabe que é
preciso cuidar dos negócios, ser um bom marido, abandonar o vício
do fumo, ser sério e parar de inventar aventuras, que é preciso se
dedicar às leituras proveitosas (economia? direito? filosofia? Ele
não esclarece... ), assim sempre seus 'propósitos heróicos'
que não passam de boas intenções fracassadas. Quando se vê
afastado das irmãs casadouras, e principalmente da possível noiva,
Zeno, o pretendente, se abrasa de ciúmes, deseja ardentemente aquela
que está fora de alcance, até se julga apaixonado, destinado a um
amor puro. Ao narrar, mais velho, ele se ri desse arrebatamento
romântico, “Tão puro me tornava aquele amor!”, para
considerar: “De tais dias sei ainda que os devaneios de amor
eram aniquilados pela dura realidade. O sonho era agora diferente.
Sonhava com a vitória em vez de com o amor.” [p. 97]
O
narrador diz sofrer de algum mal-estar, uma doença, de origem
psicossomática, devido aos seus anseios e insatisfações, num
desgosto de auto-reprovação que se corporifica, “Desde muito
me considerava enfermo, de uma enfermidade que antes fazia sofrer aos
outros que a mim. Foi então que conheci a enfermidade 'dolorosa',
uma quantidade de sensações físicas desagradáveis que me deixaram
bastante infeliz.” [p. 98] Zeno sente compaixão de si mesmo, e
espera a comiseração alheia, que ninguém lhe inveje o destino.
“Senti-me mais infeliz do que nunca, e num mórbido estado de
compaixão por mim mesmo compreende-se que eu me mostrasse bastante
vulnerável.” [p. 100] Ele se torna altamente sugestionável, e
apenas em ouvir falar de uma doença, um reumatismo, por exemplo, ele
adquire os sintomas!
Zeno
se sente em posição inferior, sempre percebendo outros com 'maior
desenvoltura', enquanto ele sempre fracassa, como se fosse vítima de
conspiração, daí não poder confiar nas pessoas ao seu redor.
Afinal, quem levaria à sério um perdedor? Assim, é o martírio de
Zeno, dono de grande sensibilidade, sem nutrir ilusões sobre si
mesmo, mas sem qualquer 'desenvoltura' na vida social. Sempre outros
ocupam espaço, conquistam as vagas, realizam as vendas, casam com as
noivas em flor.
O
jovem precisa voltar ao convívio da família de moças casadouras,
nem que sejam para participar de 'mesas girantes' de sessão espírita
(que ele, mente positivista, se soubesse antes que causaria tal
sucesso, teria sugerido à mesmerizada família!) para protagonizar
uma cena bufa de confissões e mal-entendidos entre as mocinhas que
esperam antes que um espírito se manifeste do que um pretendente!
Como é difícil contentar estas mocinhas casadouras – e que
imprevisíveis! A quem foi concede atenção, retribui com desdém! E
a quem você desprezava, mostra um olhar amoroso! No mais, a coisa se
complica, quando surge um rival.
Precisa
ele agradar ao rival para agradar a sua noiva a ser conquistada? Mas
não sabe ele que é a outra irmã que o deseja? Ele é obrigado a
ser espirituoso, agradar aos familiares das irmãs casadouras, até
tolerar o exibicionismo do rival, que se mostra competente nas
melodias do violino. Zeno não quer tecer elogios ao rival, mas como
evitar o encanto da melodia que inunda aquele sarau? Agora, o Zeno
narrador é capaz de apreender o que aconteceu ao Zeno enamorado,
Eu
protestava, e Bach seguia seguro como o destino. A apaixonante
melodia das cordas altas mergulhava à procura de um basso
ostinato que nos surpreendia, não obstante o ouvido e o coração
já o pressentirem, dada a sua precisão! Um átimo mais tarde, e o
canto se teria dissolvido antes de ser alcançado pela ressonância;
um átimo antes, e ela se teria sobreposto ao canto, destroçando-o.
Tal não ocorria com Guido: não lhe tremia a mão nem mesmo
executando Bach, o que me deixava em verdadeira inferioridade.
Hoje
que escrevo, disponho de todas as provas disto. Não me gabo de ter
então percebido o fato com tanta clareza. Na ocasião, estava
repleto de ódio e nem aquela música, que eu aceitava como a minha
própria alma, conseguiria aplacá-lo. Em seguida, o transcurso da
vida comum de todos os dias acabou por anulá-lo sem que eu a isso
opusesse tais milagres. Seria horrível se os gênios não se
percebessem disso! [p. 122]
Em
pleno apogeu do rival, o hesitante Zeno ousa declarar seu amor pela
noiva ansiada. Claro que tudo concorre para que ele se complique
mais. A irmã cortejada, a mais velha, sabe do interesse da mais
jovem, e tenta tornar tudo claro para o pretendente. Mais
mal-entendidos se sucedem, até uma cena de ofensas. Previsível,
depois de todo o emaranhado caos promovido pelo protagonista.
“Esqueci as muitas palavras de desdém que ela me dirigiu, mas
não a sua face, bela, nobre e sadia, enrubescida pelo desdém e
cujas linhas com a indignação se tornavam mais precisas, quase
marmóreas. Jamais esquecerei; e quando penso em meu amor da
juventude, revejo a bela, nobre e sadia face de Ada no momento em que
me eliminou definitivamente de seu destino.” [p. 125]
Recusado
pela mais velhas das moças casadouras, Zeno distribui sua propostas
as outras mais jovens, sem medir as consequências de suas propostas,
assim tão repentinas. Afinal, as outras sabem da recusa, e do
despeito do pretendente sem sucesso. O que deseja Zeno senão
companhia? Caso contrário, deverá ele se afastar daquela família
plena de moças em flor? Então ele anuncia seu noivado com a
irmã seguinte, Augusta, a menos bela, após as recusas de Ada, a
madura, e Alberta, a adolescente. Trata-se de uma decisão certa?
Zeno se casou com a mulher que o ama, mas a quem ele não ama. Tudo
para ter paz e uma noite de sono.
Em
vão, pois novas manifestações da estranha doença psicossomática
voltam a afligir o jovem Zeno, como se um ataque de artrite ou
nevralgia, próprios do reumatismo. É uma dor que passa a ser a
verdadeira companheira, sempre lá, em sua carne, “essa dor
nunca mais me abandonou”, até sua velhice, quando se senta
para escrever este relato, entre triste e irônico, que agora
acessamos, enquanto bons leitores. E é ao narrar que ele percebeu
enfim a origem psicológica da dor: o sentimento de derrota
diante do rival. “A origem odiosa da doença se perdeu, e agora
foi inclusive difícil reencontrá-la.” [p. 132] É uma dor que
se manifesta em outras partes do corpo, mas sempre a mesma dor, “É
estranho como todas as partes de nosso corpo sabem doer da mesma
forma.” [p. 133]
É
o relato a forma de identificar – e, se possível, curar –
a dor constante? “Talvez a psicanálise possa trazer à luz toda
a perturbação por que passou meu organismo naqueles dias,
especialmente nas poucas horas que se seguiram ao meu pedido de
casamento.” [p. 133] Como pode a narração ajudar no processo
de cura? Poderá ele se livrar de seus vícios e dores? Poderá se
encontrar redimido perante si mesmo? Ele nos apresenta seu passado –
num relato para o médico – e tenta se descobrir ao observar a
versão mais nova e inexperiente de si mesmo.
Zeno,
o narrador, pode olhar para trás para o jovem Zeno e entender melhor
o vivenciado, pode se julgar. Por exemplo quando resume seu noivado,
em breves linhas, “Foi um noivado trabalhoso. Tenho a impressão
de havê-lo anulado várias vezes e refeito com grande fadiga outras
tantas, e surpreende-me que ninguém se tivesse dado conta disso.
Nunca tomei por inteiro as iniciativas do casamento: parece, contudo,
que me comportei como noivo bastante amoroso.” [p. 140] Um
noivado tedioso que parece sempre infinitamente igual, com os dois
casais juntos numa sala de família burguesa, com as moças em
amostras de trabalhos domésticos e os pretendentes em conversa. O
rival, agora parte da família, tece considerações sobre música e
pintura. Assim se passa o tempo.
Ele
precisava agradar a família da noiva, mostrar uma paixão que não
sente, elogiar sempre e ser gentil, pois não se deve ser frio com a
futura esposa. Parece que ele reconhece que enganou a todos com seu
exemplo de 'grande paixão'. Mas ele ainda hesita! Quer desistir do
casamento, pelo qual sofreu tanta ansiedade. Mas acaba por firmar o
compromisso, para descobrir que o “casamento é coisa bem mais
simples que o noivado”, que até se casaria novamente, mas não
seria noivo da mesma mulher. Quanto a mulher que ele dizia amar, a
esta ele agora dedica um amor fraternal, como convém na condição
de cunhada.
Mais
uma fase se cumpriu na vida de Zeno Cosini, agora que espera no
casamento uma tranquilidade que lhe foi negada antes. Ele descobre na
companhia da esposa um envolvimento amoroso que não esperava. A
amável esposa lhe dá uma nova segurança, com uma rotina doméstica
de dedicação, e ele procura corresponder a esta segurança, e
também sanidade – ser são de corpo e mente. Assim ele vê a saúde
da esposa, tão segura com o lastro da tradição e da autoridade,
“Estou analisando a sua saúde, mas não consigo fazê-lo, pois
me acode que, ao analisá-la, converto-a em doença. E ao escrever
sobre ela, começo a duvidar sobre se aquela saúde não careceria de
cura ou tratamento. Vivendo ao seu lado durante tantos anos, jamais
me ocorreu essa dúvida.” [p. 149]
Nada
como a tradicional família patriarcal para domar e disciplinar um
homem. Sim, pois a esposa contribui para o papel masculino, que antes
era ironizado. “Colaborava para a constituição de uma família
patriarcal e eu próprio me tornava o patriarca que no passado odiei
e que agora me surgia como símbolo de saúde.” [p. 149] Ele
assume este novo papel, o de homem tradicional, graças à dedicação
da esposa (cúmplice no arranjo patriarcal?), mesmo que muitas vezes
fosse difícil tal simulação, uma vez que a ironia pode corroer
tudo. (No mundo tradicional a ironia seria uma forma de doença...)
No mais, “a saúde impele à atividade e à aceitação de um
mundo de enfados.” [p. 150]
É
um verdadeiro dever o de se mostrar feliz e realizado! Excursões,
visitas, compras, eis o que garante a sanidade dos recém-casados.
Numa relação sorridente, onde um ri do outro, dos defeitos que
julgam superados, dos ideais que são inalcançáveis, tudo para
manter a instituição segura. Mas em vão, pois outras doenças
podem surgir. Quando estamos felizes, temos medo de perder este
bem-estar. Quando somos jovens, temos medo de envelhecer. Quando
somos velhos, tememos a morte que se aproxima. Pois “a velhice
causava-me temor pelo fato de me aproximar da morte.” [p. 152]
quando ele não mais interferiria na vida da esposa, que logo o
substituiria e o esqueceria. A esposa que é plena saúde, mas ele
não, ele, ser de consciência, é doente, “os saudáveis não
se analisam a si próprios, sequer se contemplam no espelho. Só os
doentes sabemos algo sobre nós mesmos.” [p. 153] Então,
quando atemorizado, ele busca conforto junto a mulher que é
saudável.
Para
o jovem Zeno o casamento significa paz, sossego, assim ele poderia se
dedicar a alguma atividade produtiva. É quando ele resolve
trabalhar, ao cuidar de seus negócios, mas apenas para descobrir que
não pode administrar a própria herança. “É natural
sentirmo-nos menos doentes quando temos pouco tempo para isso.
Entreguei-me ao trabalho e, se nele não persisti, não foi de fato
culpa minha.” [p. 155] Assim como o pai não confiava nele, o
advogado com ares de tutor também não o leva à sério. As
intuições de Zeno são desprezadas, o que vale é a palavra do
Mercado, a intuição das Bolsas de Valores. Acontece que Zeno se
afasta dos negócios e procura outros afazeres, tais como música,
leituras, estudos religiosos. Ele descobre que religião é um
conjunto de rituais, e que poucos se interessam por aprofundar em
teologias. Ele que tem todo o tempo do mundo se debruça sobre
misticismo e metafísica, mas vive um grande tédio,
Meu
refúgio magnificamente organizado era vez por outra visitado pelo
tédio. Tratava-se mais de uma ânsia, pois, embora me sentisse com
forças para trabalhar, estava sempre à espera de que a vida me
impusesse alguma tarefa. Nessa expectativa saía muitas vezes e
passava horas seguidas no Tergesteo [a Bolsa de Valores de Trieste]
ou num café.
Vivia
numa simulação de atividade. Uma atividade aborrecidíssima. [p.
159]
No
tédio, volta-se o olhar para as doenças, reais ou imaginárias.
Será um quadro de hipocondria? Por que a insistência em contrapor
doença à saúde? Torna-se uma verdadeira distração abordar e
esmiuçar condições de enfermos e seus diagnósticos. Pior mesmo é
ser um doente imaginário para o qual não há fármaco neste
mundo que o possa curar! Ora, se Zeno é um doente imaginário,
é um doente pacato, cuja doença a ninguém incomoda! Enquanto ao
lado alguém pode desejar sinceramente ter uma doença, como uma
necessidade. O doente imaginário não seria um futuro
paciente de psicoterapia? Só o analista poderia propor terapia para
uma doença de fundo psicológico? Como viver com uma doença nos
nervos? Sentir a doença com antecedência, sofrer os sintomas meses,
anos antes!
Em
sua inatividade, em sua vida ociosa, Zeno esbanjava tempo em
conversas, diagnósticos e filantropia. Tem a oportunidade de ajudar
uma adolescente estudante de música, a quem faz um visita, ocasião
na qual recolhe a gratidão alheia. Mas não fica apenas nesta
visita, pois ele logo idealiza a mocinha, ao tentar vislumbrar
talento na jovem de pálida beleza. Zeno sabe que nutrir desejo pela
senhorita é colocar em risco a paz de seu casamento, mas como
poderia fazer, ele dado aos vícios? A aventura amorosa seria uma
forma de eliminar o tédio? “Por que o meu desejo haveria de
infundir-me remorsos quando parecia destinado a salvar-me do tédio
que àquela época me assaltava?” [p. 170] Mas ele mesmo tem
consciência de seu remorso, que devia ser atenuado, “Minha
consciência é de tal forma delicada que, à minha maneira, já
então me preparava para atenuar meu futuro remorso.” [p. 170]
Zeno,
o novo patriarca, está plenamente ciente dos riscos de uma aventura
amorosa, sabe de seus deveres de homem casado. Mas esta consciência
não o impede de se entregar aos vícios! Ele sabe, resiste um pouco
mais, mas o vício (ou pecado, caso usemos um termo
moral-religioso) acaba por vencê-lo. Tudo isso ele confessa. Por
caminhos tortos, aos poucos, se desvia dos deveres, a justificar cada
passo mal-fadado, a tentar legitimar cada má intenção, a manter as
aparências. Camuflando suas intenções como auxílios a uma jovem
artista, Zeno se aproxima daquela que deseja como amante. E ele
sempre se esquivando, se explicando, cheio de bons propósitos.
Ele hesita em cometer traição, mas, ao fim, se julga induzido a
isso! Por ociosidade, por cegueira da esposa, por condescendência da
senhorita?
Com
a desculpa de entregar à jovem cantora um estudo de técnica vocal,
a camuflar assim o seu desejo de revê-la, Zeno adentra o território
da aventura, com até evidente cinismo, “Ser honesto é antes de
tudo ser sincero, e de minha parte teria sido honestíssimo,
aconselhando a pobre moça a abandonar o canto e tornar-se minha
amante. Mas eu ainda não tinha chegado tão longe do jardim público
e, além disso, não estava muito seguro de meu juízo crítico na
arte do canto.” [pp. 175-176] Assim, em sua ociosidade, bastou
a interferência de um amigo doente, dado à filantropia com dinheiro
alheio, para que Zeno manchasse sua vida de casado, sabendo que só
poderia ser freado “por minha própria consciência”.
Ele
ousa se aproveitar da pobreza alheia, com o pretexto de incentivar os
talentos artísticos da senhorita, ao criar um personagem: a do
filantropo desinteressado. A mocinha, por outro lado, precisa de um
protetor, e teme não agradá-lo. Pois ela sabe que sem a proteção
de um homem rico não poderá seguir sua carreira, com o dom musical
que julga ter! Por isso a estudante de canto não resiste a toda a
aproximação do pseudo-filantropo. Se não fosse com este
'filantropo' seria com outro. (Mas, não seria esta uma desculpa
forjada por ele? Afinal, não temos a versão dela para os fatos que
somente ele vem narrar.) “As mulheres sempre sabem o que querem.
Não houve hesitações nem por parte de Ada, que me repeliu, nem de
Augusta, que me agarrou, nem muito menos Carla, que me deixou à
vontade.” [p. 179]
A
traição começa como aventura, e logo a dor na consciência se
manifesta num desconforto físico, “Sentia-me diminuído,
culpado e doente, e sentia uma dor ao lado como um reflexo, que
revelasse a grande ferida que me ia na consciência.” [p. 179]
Assim como julgava proibir-se de fumar, ele se julga capaz de
impedir-se de trair – mas como o viciado se livra do vício, que o
domina? Ele se permite satisfazer os caprichos da esposa, para que
esta não desconfie de algum outro interesse por parte do marido. Mas
ele precisa também satisfazer os caprichos da outra! Afinal, a outra
já julga ter domesticado o protetor ao ter permitido o beijo. Mas o
que ele espera da amante é apenas a submissão, a fraqueza que o
excita.
Com
sua traição, o narrador sabe que traiu a esposa e amante, mesmo
quando julga ser um arauto da sinceridade. Quando julga ser sincero é
que ele mente melhor! E a consciência de suas confissões-mentiras o
mantém afastado da tranquilidade que ele almeja – é este o
destino a ele reservado! A paz traz tédio, logo surge uma aventura,
e a possibilidade de risco. Com a traição ele se sente
desconfortável diante da esposa que o ama e que é tão segura. Como
não confessar diante dela? Afinal, ela atuaria como uma extensão de
sua própria consciência. A esposa poderia sentir a insinceridade do
marido – bastaria vislumbrar-lhe a face, pois “a história de
minha traição poderia assim estar inscrita na minha face honesta.”
[p. 191]
Assim
Zeno perdia a sua paz doméstica, a cura esperada, e novo vício o
domina. “Eu permaneceria mais doente do que nunca e exposto aos
meus danos e aos dos outros.” [p. 192] Ele tinha consciência
e, mesmo assim, se deixou arrastar, “Tinha lamentado tanto minha
traição antes de cometê-la que talvez parecesse ter sido fácil
evitá-la. Podemos rir das boas intenções que ocorrem depois do
acontecido, como também das que os antecedem, pois não valem de
nada.” [p. 192] Sim, o que ele pode fazer é isso mesmo: rir
das boas intenções. Enquanto todo um drama se desenrola na mente de
Zeno a ponto de fazê-lo 'bater os dentes', a esposa julga que ele se
deixou afetar pelo casamento da irmã, a mais velha, a escolhida.
Mas, ele de imediato nega qualquer relação com o caso, e quase
confessa. Mas ele volta a lembrar-se de sua doença
imaginária, sua depressão, seu medo da velhice. Não há verdadeira
confissão: e a última traição torna-se a primeira traição.
O
narrador confessa que a traição é uma inautenticidade, “Eu
jamais consegui ser natural com ela [a amante]” [p. 199], onde
só a uma satisfação momentânea, sempre ameaçada por riscos e
duplicidades. Ele diz que não sentia remorsos, que voltava para o
lar, para os braços da esposa, que saberia não se comprometer mais,
mas é todo um discurso para legitimar o que já acontecera. Não é
autêntico com a esposa, assim como não é com a amante, pois em
casa assume o papel do patriarca, “portei-me como devia
portar-me com a mulher que era honesta e fielmente minha.” [p.
200], ele que não era inteira e sinceramente dela. Ele não quer
cometer mais traições, mas é só o que consegue fazer!
Enquanto
se dedica a trair a esposa, o patriarca Zeno comparece à festa de
casamento da cunhada, outrora a escolhida. E é momento de agradar a
todos, mostrar-se bom esposo, até marido-modelo, e não se
embriagar, como logo aconteceu. Ele quer agradar e é, então, que
ele se complica mais, se observa mais. Ele desconfia de si mesmo e
tem medo de se delatar! Para ele o vinho não traz a verdade, mas
desnuda nossas mentiras, desvela nosso passado, a deixar-nos nus
diante da sociedade! Ficar bêbado no banquete da família é uma
experiência memorável. (Ainda mais depois de ter visto o amigo
falecido àquela mesma tarde, e ter ousado fazer piada com a morte
alheia.)
Zeno
mantém-se em sua aventura amorosa como firme propósito de
voltar ao aconchego do lar, assim como fazia firme propósito de
abandonar o vício do fumo. Sempre vai adiando a resolução de fazer
cessar o vício – pois o vício é que o domina. É em vão dizer
que o vício pode ser dominado com uma forte determinação: pois o
vício já é um senhor e a vontade da vítima apenas um vassalo.
O
que ele buscava era uma calma junto a amante, mantendo um ar paternal
com a mocinha cantora. Até que a amante passe a invejar e ofender a
esposa, o que causa remorso no marido infiel. Pois enquanto a esposa
passa o tempo a cuidar do pai agonizante, o infiel é convidado a
passar a noite com a amante. É tamanho o peso do remorso, que ele
foge, enfrenta a chuva e vai se encontrar com a esposa junto ao
sogro. Assim a amante vira foco de tensão, ainda mais quando ela tem
novo professor de canto, quando surge o desassossego do ciúme, pois
está ciente de que o professor se 'afeiçoa' à aluna. É ainda mais
sensível quando sabe que junto a esposa ele tem o “ambiente de
saúde e de honestidade” [p. 228]
É
evidente: a relação de Zeno com a amante Carla é a mesma com o
cigarro – abandonar o vício não hoje, mas amanhã. Mas é o vício
que determina. Ele cede aos caprichos dela, mas não a
assume, chega mesmo a renegá-la em público, apenas para dar motivo
para ser abandonado. E quando ela o abandona é que ele a compreende
melhor! Sim: a amante sabe que não ocupará o lugar da esposa,
“elevada aos píncaros celestes”, e ela decide se casar com o
maestro, o professor de canto, sem posição social. Tudo porque a
amante resolve não participar mais da traição à esposa.
Enquanto
isso, Zeno fica a saber que o talentoso Sr. Guido andava a trair a
bela Ada – a escolhida – com uma simples criada! E tudo dentro da
própria casa! E Zeno com tantos cuidados e malabarismos para ocultar
sua traição! E ele sempre a sentir a falta da amante como se fosse
um sintoma de abstinência: uma crise de aflição! Ele se irrita em
casa, faz cenas, se desculpa, volta a procurar a amante, que já o
excluiu da vida dela. É um viciado que corre atrás de nova dose de
droga. E sem amante ele se retorce com a falta em perambulações
pela cidade, “num passo ritmado, que ao menos serviria para dar
um pouco de ordem ao meu espírito” [p. 250] até se acalmar,
até se encontrar, “vi-me como se uma grande luz me houvesse
projetado de corpo inteiro sobre o calçamento observado por mim.”,
sabendo que sua grande calma era o fluxo rotineiro, a correnteza da
“vida honesta de minha casa”, onde ele sempre fazia
grandes propósitos, que nunca cumpriria.
continua ...
fonte:
SVEVO, Italo. A Consciência de Zeno. Trad. Ivo Barroso. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
jan/14
Leonardo
de Magalhaens
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