quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

sobre Lolita - de Nabokov [parte 2]





sobre Lolita (Lolita, 1955)
do escritor russo-norte-americano Vladimir Nabokov (1899-1977)
(tradução: Brenno Silveira / 1981)


Quando se apresenta a figura do narrador-pervertido

parte 2



            Finalmente, Humbert reencontra Dolores no acampamento e interpreta bem o papel de novo pai. Ela se mostra diferente, menos bela do que ele imaginava, mas é que a fantasia realmente aumenta o fascínio da amada. Humbert inventa uma internação de Charlotte para tratamento, ocultando assim o acidente fatal. De início, ela não entende bem como portar-se diante do novo pai, nem de como ele se tornou seu novo pai. “Quando foi que você se apaixonou por mamãe?”, ela quer saber, a julgar que ele não mais se interessa por ela. Mas ele não perdeu o interesse! E ela lhe rouba um beijo! “Sabia, claro, que aquilo não passava de um jogo inocente de sua parte, de uma bobagem de garota a imitar algum romance barato” [p. 153]. Então ele não pode se empolgar muito, para não assustar a criança. Convenhamos: ela apenas disputava o hóspede com a mãe.

            O Dr. Edgar H. Humbert e sua filha se alojam num hotel, de modo discreto e inocente, para melhor camuflar as intenções do narrador, mal podendo se conter. A menina joga um  charme que é puro jogo de sedução, sim, simulação mesmo, sem saber o quanto de tensão provoca nele. Ela repete gestos e olhares que já viu nos adultos, nas mulheres, na própria mãe, mas sem imaginar que reais efeitos causam. Pai e filha se misturam à rotina do hotel, toilete, restaurante, e ele a ministrar pílulas sonoríferas como se fossem vitaminas! O que se sucederá?

            Ele interrompe o quadro, a narrativa, volta-se para nós, que o julgamos - “nobres senhoras do júri! Sede indulgente para comigo! Permiti que tome apenas um pouquinho de vosso precioso tempo.” [p. 167] – entendamos que ele preferiria não se envolver mais, não atentar contra a 'pureza' infantil. O melhor seria deixar a menina em paz. Ainda que ele não acredite tanto na inocência – num mundo em que as crianças descobrem tudo, sabem muito, e se confundem com adultos. Lolita é um tanto precoce – em vaidade e capricho, em indisciplina – mas tudo por despertar da adolescência. Há um impulso erótico na menina – diz o libertino, a sufocar seu lado moralista – pois ”Lolita já havia demonstrado ser algo inteiramente diferente da inocente Annabel” [p. 169] revela para nós, os “alados senhores do júri”, o cínico narrador.

            Ele espera nossa atenção para sua cena de sedução (que não segue como planejado, com o efeito passageiro do sonífero), “por favor, leitor: qualquer que seja a sua exasperação com o terno, morbidamente sensível, infinitamente circunspecto herói do meu livro, não pule estas páginas essenciais! Imagine: eu não existirei, se o leitor não me imaginar” [p. 175] como uma cumplicidade sempre explicitada, “vamos mesmo sorrir um pouco. Afinal de contas, não há mal algum em a  gente sorrir”., sempre para se justificar, para implorar por nossa compreensão e perdão. “se me detenho na descrição dos tremores e apalpadelas daquela noite distante, é porque insisto em provar que não sou, nunca fui e jamais poderia ter sido um patife brutal. As suaves e sonhadoras regiões pelas quais eu rastejava eram patrimônio de poetas – e não o terreno em que rondava o crime.” [pp. 178-179] 

            Bem, chegamos finalmente à confissão do crime. E a culpa jogada sobre a vítima! “Frígidas e nobres senhoras do júri! Eu julgava que deviam passar meses, talvez anos, antes que ousasse revelar-me a Dolores Haze; mas, ali pelas seis horas, ela já estava inteiramente acordada e, às seis e quinze, já éramos, tecnicamente, amantes. Vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu.” [pp. 179-180] Ele quer dizer a menina já experimentara um despertar sexual? Que ela já era instruída? Ela ensina os truques?? Ela é a depravada, não ele!  Não enfadarei os meus eruditos leitores com uma descrição pormenorizada da presunção de Lolita. Basta dizer que não encontrei sinal algum de pudor nessa bela e ainda mal desenvolvida jovenzinha” [p. 181]

            Realmente a leitura deste romance clássico vale pelo narrador, sua elegância cínica, não exatamente pelo tema, pelo drama (que ainda se adensa). O narrador explicita o acontecimento narrativo, a espera de nossa cooperação, nós, os juizes, os jurados, os carrascos. “Tenho de caminhar com cuidado. Tenho de falar num sussurro. Oh, tu, veterano repórter policial; tu, grave e velho oficial de Justiça; tu, que já foste policial popular e que, agora, te encontras na prisão, incomunicável, depois de ajudar durante anos, com dignidade, numa esquina, os colegiais que tinham de atravessar a rua – todos vós, miseráveis eméritos, a receber agora lições de um menino! Jamais daria certo – não é verdade? - se vos apaixonásseis loucamente pela minha Lolita!” [p. 182]

            E finalmente a razão de escrever seu relato, que ora investigamos. “Estou procurando descrever estas coisas não para revivê-las em minha infinita miséria atual, mas a fim de separar o que havia de céu e de inferno naquele mundo estranho, terrível, enlouquecedor –o amor de uma nymphet. O bestial e o belo fundiam-se em determinado ponto e é essa fronteira que eu gostaria de fixar – mas sinto que malogro irremediavelmente.” [p. 183]

            Então a desculpa-mor do réu: ele não corrompeu a menina, pois ela já estava corrompida quando participava destes acampamentos de férias. São os jovens que se corrompem entre si em brincadeiras sexuais. Não precisam ser seduzidas por adultos. Afinal Lolita não era nada inocente, ao contrário, mostrava ser “algum demônio imortal disfarçado em menina.” [p. 189] Imagina ele assim estar justificado? Que seu crime inexistiu? Que ele foi vítima de uma adolescente? Mas ele não revela seu “doloroso sentimento de culpa”?

            Aqui já não sabemos mais se estamos diante de uma narrativa ambígua ou um sujeito a esperar cumplicidade. Ele se denuncia e se justifica, se dirige ao leitor e pede desculpas às memórias de Charlotte e Dolores. Ele está ciente de tudo e nada mais pode mudar, está aqui condenado. Revela que a mãe está morta, que a menina está dominada, que ela não tem para onde ir, senão para o seu lascivo tutor. Finda a parte 1.
            Na parte 2 até parece que começa outro romance. O tom é de aventureiro, sem tanto tratado de psiquiatria, sem considerações de pedagogia ou pedantismos já desbotados. Aqui o relato de viagens, hospedagens, sexo nos motéis (hotéis de beira-de-estrada, entenda-se), máscaras de pai e filha, cumplicidade entre pedófilo e vítima. Ele quer nos convencer que a vítima consente e até estimula a relação perversa. Um homem adulto maduro europeu a desejar e suportar uma menina norte-americana caprichosa e precoce. Não podia mesmo dar certo.

            Nos sonhos, idealizações doentias de Humbert Humbert ele está a proteger a menina dos males do mundo (outros pedófilos? Os rivais?) e educá-la para a vida (i.e., bem servi-lo sexualmente?) ao contrário do rapaz lá do acampamento que se aproveitava das meninas. “Esqueçamos, porém, Dolores Haze, a terminologia legal, terminologia que aceita como racional a expressão 'coabitação libidinosa e lasciva'. Não sou um criminoso psicopata sexual a tomar liberdades indecentes com uma criança. O estuprador foi Charlie Holmes; eu sou o terapeuta – uma nítida questão de distância quanto à diferença. Sou o seu paizinho, Lo. Veja, tenho aqui um livro erudito acerca de jovenzinhas.” [p. 203]

            Lolita não pode denunciá-lo – pois se ele for preso, quem cuidará dela? O Estado com seus internatos? Orfanatos? Escolas de reeducação juvenil? É então melhor para ela continuar sob o domínio do bom paizinho? Com Lolita, o narrador Humbert, ao volante, sempre apreensivo, segue pelas estradas da América, entre paisagens e seduções, líricos piqueniques, tudo a compor uma, digamos, geografia afetiva? Uma espécie de On the Road (refiro-me à obra-prima de Jack Kerouac, publicada no ano seguinte) do homem maduro e sua nada inocente Lolita,

Pondo em movimento a geografia dos Estados Unidos, eu, durante horas a fio, fazia todo o possível para dar-lhe a impressão de que 'ia a algum lugar', de que rodava rumo a algum destino preciso, a algum deleite invulgar. Eu jamais vira estradas tão macias e amáveis como as que  agora se estendiam à nossa frente, através da louca colcha de retalhos de quarenta e oito Estados. Vorazmente tragávamos aquelas longas rodovias e, em elevado silêncio, deslizávamos pelos seus brilhantes e negros pisos de dança. [p. 206]

            O fato é que o sedutor deve manter a menina distraída, em expectativas de viagem, sempre curiosa, entre cada aproximação sexual. É um turismo de fachada o que é descrito, tudo uma farsa. “Ora, ao ler com atenção o que se segue, o leitor deveria ter em mente não apenas o circuito geral, tal como foi mal sugerido acima, com suas muitas faixas laterais e armadilhas de turistas, círculos secundários e laterais e desvios caprichosos, mas, também, o fato de que, longe de ser uma partie de plaisir, nossa viagem foi um difícil, retorcido desenvolvimento teleológico, cuja única raison d'être (estes clichês franceses são sintomáticos) era manter a minha companheira, entre beijo e beijo, num estado de espírito razoável.” [pp. 209-210]

            Em suas viagens, o narrador passa por momentos de desconfiança, ciúmes, brigas, pois a menina logo amadurece enquanto mulher, após tantos e profundos 'exercícios' amorosos, “Oh, eu tinha de manter Lo – a fraca Lo – debaixo de meus olhos! Devido, talvez, ao constante exercício amoroso, ela irradiava, apesar de sua aparência muito infantil, algum encanto langoroso especial, que lançava os  empregados da garagem, criados de hotel, excursionistas, terroristas em carros luxuosos, idiotas queimados de piscina, em crise de concupiscência que bem poderiam lisonjear o meu orgulho, se não despertassem meu ciúme.” [p. 217]

            Fora estas confissões de ciúme, pouco sabemos dos reais sentimentos do narrador em relação a sua Lolita. É um desejo de posse? É um interesse meramente sexual? Pois nada há daquela idealização que movimentou a parte 1 do romance. Agora ele até deprecia a sua Lolita, ora 'minha querida', ou 'minha pubescente namorada', ora 'minha vadia colegial', numa oscilação entre a satisfação e a desconfiança. Afinal, nenhum homem – nem adolescente – deve receber os mesmos 'favores sexuais' que ele recebe da menina-moça. “Ela é minha, minha, minha” ele se vangloriava.

            Como conseguirá o narrador manter a adolescente longe de outros adolescentes? Afinal, ele é o pai, o padrasto! Não pode manter a farsa por muito tempo.  Ela é a filha, a enteada, e vai desejar novas amizades, novos rapazes fogosos. Enquanto isso, ele não se furtava de observar, vislumbrar, apreciar outras ninfetas, seja em clubes, piscinas, quadras de esportes, parques de diversões, cinemas. Ele anota cada detalhe do comportamento de Dolores com outras adolescentes. Tudo isso ele relata com qual propósito? “Relaciono esses pequenos nadas principalmente para provar aos meus juízes que fiz tudo o que estava ao meu alcance para dar a Lolita divertimentos deveras interessantes.” [p. 222]

            Mas Humbert quer ser discreto, passar desapercebido, mas Lolita quer se enturmar, quer aproveitar sua adolescência, e não ficar apenas à disposição dos jogos eróticos dele, cada vez mais ousados e ruidosos. Ele não poupa mais cinismo, se dizendo 'pai apaixonado' ou 'bom pediatra', como se fossem justificações! E Lolita? O que ela pensa disso tudo? Ou o que ele acha que ela pensa? Ou sente dessa aventura sexual e turística? “Ela penetrou em meu mundo, a humilde e negra Humberlândia, com impetuosa voracidade; examinou-a com um alçar de ombros de divertido desagrado – e, hoje, parece-me que ela estava pronta para afastar-se dele experimentando algo que se assemelhava a pura aversão.” [p. 226] Aversão! Entende-se como a curiosidade deu lugar ao desgosto. Humbert só pensava em desfrutar da menina numa farsa obscena.

            E ele ainda espera nossa compreensão! “Oh, não me encare com ar carrancudo, leitor, pois não pretendo dar a impressão de que não consegui ser feliz. O leitor deve compreender que, na posse e escravidão de uma nymphet, o viajante encantado se encontra, por assim dizer, além da felicidade.” [p. 226] Sua satisfação completa está longe -mesmo que tenha um 'objeto sexual' à disposição. Ele no íntimo quer a perdida Annabel Lee, criatura inalcançável num 'reino à beira-mar', que ele encontra corporificado na 'Annabel Haze' ou 'Dolores Lee',

O hábil psiquiatra que estuda o meu caso – e para o qual o atual Dr. Humbert já deve ter adquirido, a esta altura, um estado de leporina fascinação – está, sem dúvida, ansioso para que eu leve a minha Lolita a uma estação de veraneio à beira-mar e lá encontre, finalmente a 'satisfação' de um impulso que me acompanha durante toda a vida, libertando a obsessão 'subconsciente' de um romance infantil incompleto com a inicial e pequena Miss Lee. [p. 227]

            Ele tem expectativas, pois deseja que a sedução seja discreta, mas com certo glamour, ao ar livre, como um divertimento, o que não acontece em praias tumultuadas ou sujas, ou climas nada propícios, a deixar apenas uma certa decepção. “A decepção que devo registrar (enquanto, aos poucos, transformo minha narrativa na expressão do risco e do temor contínuos que atravessavam minha felicidade) não deveria, de modo algum, refletir-se nos líricos, épicos, trágicos, mas nunca arcadianos, descampados americanos.” [p. 228] Mas qual o problema? “Nos desertos da América, não será fácil ao amante ao ar livre entregar-se ao mais antigo de todos os crimes e passatempos.” [p. 229]

            Em suas viagens, ele por pouco não sente o peso da lei, ou é pego por causa de  denúncias. Pode um pai ou tutor sair a viajar por aí com sua enteada ou pupila? Não deveria ele notificar o Estado? Entregar a menina a um tipo de conselho tutelar? Mas ousaria o Sr. Humbert aparecer diante de um tribunal ? Ele acha melhor ser discreto e não ser denunciado. Assim, ele espera passar o tempo, a desfrutar a beleza precoce da menina, que não será menina para sempre. Sua Lolita não será mais lolita em breve. Terá ela neta para quem o narrador será um bom e afetuoso avô? Cinismo, como se é de esperar. Afinal, nem bom pai ele soube ser.

            As viagens precisam cessar, ele precisa de dinheiro e certa posição social. Chega desta farsa de viagem, dessa fuga pelas estradas da América! É preciso que Dolores estude (de preferência num internato para moças), que Humbert se estabeleça num trabalho. Começa outra parte dentro da parte 2, quando já concluímos a leitura de cerca de 3/5 da obra. Basicamente: Humbert é hóspede, erudito e dissimulado; Humbert é marido e, pouco depois, é viúvo; Humbert é padrasto (e tutor?) dedicado em viagens; Humbert tenta ser pai na vida social.

            O Monsieur Edgar H. Humbert teme ser descoberto e denunciado, além de perder a Lolita, e toma todas as precauções, de forma obsessiva, como lhe é próprio. Ele parece sugerir que satisfazia todos os desejos da caprichosa Lolita, sempre antenada em futilidades, sempre ambiciosa, sempre egoísta. É como se ela se aproveitasse dele – da paixão dele, da obsessão dele! Esta é a defesa? Ele que patrulha a menina, a impedir seus contatos e amizades! Como ela terá uma vida social, como ela se desenvolverá enquanto jovem e adulta? Não percebe ele que estava a destruir a menina? Uma sexualidade adulta agressiva a 'queimar etapas', a implodir a puberdade, a arruinar a juventude. Ele sabe que ela se interessa por outros rapazes, e que consegue se esquivar à vigilância doentia dele. Ela que é sua 'mimada filha-escrava'. Ele que se consome num “constante estado de ansiedade em que vivem as pessoas culpadas e de coração terno” [p. 256].

            Se Humbert não suporta os rapazes pubescentes que circulam ao redor de Lolita, ele aprecia muitíssimo as moças, as possíveis ninfetas, que se incluem em seu (dela) círculo de amizade. “O leitor já sabe a importância que eu atribuía à presença de um bando de meninas que pajeassem a minha Lolita – nymphets que seriam como um prêmio de consolação.” [p. 260] Mas, não são exatamente os rapazes que atraem a jovem Lolita. Ela prefere os homens maduros, os professores, os treinadores, os senhores respeitáveis.

            Mas ele continua em sua “miserável história” com suas suspeitas e vigilâncias, enquanto acompanha as aventuras e desventuras de Dolores no colégio internato.  A vida sexual – ou interesse sexual – da jovem Lolita é motivo de debate entre as professores, ela que é precoce e ao mesmo tempo reprimida (pelo pai conservador?), num amadurecimento sexual em descompasso. Se falassem em 'queima de etapas', estaria o narrador Humbert sob suspeitas? Que criação ele propiciava à sua caprichosa filhinha? Como lidará ele com esta aluna indisciplinada?

            Humbert precisa abolir a imagem de 'europeu conservador', precisa deixar que sua Lolita se enturmasse com outras garotas e também rapazes, e precisa deixar que ela participasse de atividades culturais, artísticas, recreativas, longe dos olhares dele. Como ela poderá se desenvolver sem contato com outras (e outros) adolescentes? Não pode ser um desfrutável objeto sexual para sempre. No mais, o glamour sexual de Lolita está se desvanecendo para o olhar pedófilo – afinal, ela está amadurecendo, não é mais criança. Ela tem um olhar de mulher, uma ironia feminina no olhar, um gestual entre o enfado e o desdém. Sim, ela mudou muito, acabou-se a “inocente fluorescência” que a envolvia.

            A crise aflora: a dominada se volta contra o dominador, pois a menina-moça não aceita mais a escravidão sexual. Uma discussão, troca de acusações, uma briga: e a Lolita foge na noite. É encontrada pouco depois, ao telefone. A telefonar para quem? Eles reconciliam: ela quer deixar a escola, e novamente viajar: mas pode ser que seja um truque dela. Ela é mesmo caprichosa, se cansa das coisas, desiste facilmente, quer mudanças, não se apega. Então, novas viagens, voltamos ao início, pois a vida deles é mesmo uma espécie de 'círculo vicioso'. O narrador tem noção, ainda que na época das viagens, não tivesse visão de todo o seu destino. Não conhecia a história toda, como agora conhece, ao narrar.

Rogo ao leitor que não zombe de mim, nem do aturdimento em que me achava. É fácil, tanto para ele como para mim, decifrar, a esta altura, um destino já cumprido; mas  um destino em formação não é, acredite, uma dessas honestas histórias de mistérios em que tudo que se tem de fazer é não perder de vistas os indícios. […]

Eu não juraria, por exemplos, que ela não tivesse tido pelo menos uma ocasião, antes ou durante a nossa viagem pelo meio-oeste, de transmitir informação ou ter entrado em contato com pessoa ou pessoas desconhecidas. [p. 288]

            Assim, entre a vigilância e a suspeita, se perde todo o encanto que o narrador incensava no início da parte 2, pois a Lolita não é mais a mesma. Ela não pertence a ele, mesmo que um corpo de menina-moça esteja ao seu lado. Como quem ela se comunica? O que espera? São detalhes que aqui não serão abordados. Nosso interesse maior pela obra polêmica de Nabokov não é o enredo em si, a fábula narrada. Antes, o nosso interesse é despertado pelo o modo da narrativa, o estilo autoconsciente do narrador cínico. O modo como preenche seu relato com digressões, descrições, ironia e até metafísica. Com um narrador diferente – por exemplo, em 3ª pessoa – o interesse pela obra seria menor.

            Assim como vimos em O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, e veremos em outras obras, como A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, o papel do narrador é essencial para o impacto estético da obra. Mudemos o narrador, e tudo muda. O narrador está constantemente falando de si mesmo enquanto fala do/da protagonista. Assim Nick Carraway fala de Gatsby e de si mesmo, assim Humbert fala sobre Lolita e si mesmo, tudo se entrelaçando. Assim também Bentinho, em Dom Casmurro, de Machado de Assis, fala de si mesmo e de Capitu. Sempre um Eu narrador em relação a um Outro protagonista, objeto de amor e ódio. Mudemos quem narra, mudemos a perspectiva da narrativa, e teremos outro efeito. 



Para o ensaio sobre O Grande Gatsby

e sobre Dom Casmurro


           Crônica de insucessos, suspeitas, ressentimentos, eis a miséria deste ser obcecado por meninas-moças. Ele nunca está contente, nunca está saciado, sempre à espreita. Será denunciado? Há alguém a segui-los? Em que espécie de trama ele se encontra? Com quem estará a menina a traí-lo? Ele nunca tem sossego, sua tragédia é diária. É um obsessivo incorrigível. É um pervertido, um delinquente, mas que voz narrativa ele exibe! Que grau de autoconsciência a se autoanalisar! Que olhar deita sobre os detalhes das pessoas e das coisas! Que memória proustiana para registrar momentos!

            Narrador que nos parece, às vezes, um ciumento Charles Swann a seguir sua amada Odette, como encontramos no Caminho de Swann, de Marcel Proust, ou seu Marcel, o narrador-protagonista, obcecado a ponto de aprisionar sua Albertine. Mas não estamos diante de um monumento como é ocaso de Em Busca do Tempo Perdido, mas de um narrador ciente de suas misérias, e sem ele seria apenas o registro de práticas pedófilas.

            Delírios, alucinações, vultos que perseguem, um certo carro vermelho, tudo se embaralha. Em que espécie de pesadelo nós, os leitores, adentramos? Onde o sonho, onde a realidade? “Sendo um assassino dotado de memória sensacional, mas incompleta e pouco ortodoxa, não posso dizer-lhes, senhoras e senhores, o dia exato em que percebi pela primeira vez, com a máxima certeza, que o conversível vermelho nos estava seguindo.” [p. 298] Um homem maduro, apresentável, corpulento aparece na história, a se aproximar de Lolita. Quem será esta figura? Que ameaça representa para o criminoso Humbert? Será um detetive, ou será um rival, outro pedófilo!, a tentar roubar-lhe a ninfeta? “Ó lentos e suaves pesadelos!”, sim, Humbert estava sendo seguido! E cada vez mais sarcástico, com os outros e consigo mesmo, em dicas para caso “os senhores quiserem fazer um filme do meu livro” [p. 304], mesclando sua face aos rostos dos 'Wanted', os procurados pela Justiça.

            Cada ausência, cada sumiço de Lolita é um tormento. Se ela vai dar uma volta, ir comprar uma revista, eis o inferno! Pode ser que ela não volte mais! Que paranoia tortura o narrador – vendo ameaças em toda parte! Sendo seguido, sendo cercado – e apanhado finalmente! Todos os homens são suspeitos, todos os carros são suspeitos! Tudo pode não passar de uma projeção de seu SuperEu, se nos deixarmos em interpretações freudianas. Ele estará delirando de remorsos? “Talvez eu estivesse perdendo o juízo.” [p. 313] Ele que padecia as angústias de seu 'pobre coração' em sua 'grotesca viagem'.

            Humbert não confiava mais em Dolores-Lolita, em quem distinguia olhares ambíguos, gestos cênicos, comportamento mimético. Tudo a fazer parte de um 'fingimento de nymphet'. Cada sorriso, cada brincadeira, cada vestido novo, cada sedução... pode ser sedução para outro! Ela não se embelezava para ele, mas para o Outro desconhecido, o rival! Sim, que dissimulada mocinha, esta Lolita! Uma espécie de Capitu adolescente, com olhares dúbios, plenos de fingimento. “Vi os olhos de Lolita – e eles me pareceram mais calculistas do que assustados.” [p. 325] Ela está em combinação com alguém ou será a mania de perseguição? “Afinal de contas, senhores, estava se tornando mais do que claro que todos aqueles detetives idênticos, em carros prismaticamente mutáveis, não passavam de figuras fictícias criadas pela minha mania de perseguição, imagens repetidas baseadas em coincidências e semelhanças casuais.” [p. 326]

            Como poderá o narrador voltar à racionalidade, se libertar do fascínio obsessivo que o deixa atado à bela ninfeta? Pois se a menina se adoenta, tem um resfriado, é isto apenas uma doença – ou parte de um imenso plano para afastá-la dele? Tudo conspira contra ele? Quem deseja roubar-lhe a Lolita? Ela que nunca o amou, a quem ela deu um 'amor desesperançado' ! Com quem ela estava a conspirar? Será ele a figura do 'pai cruel' que levara a menina a receber ajuda de desconhecidos compassivos?

            De modo que alguém – se dizendo o Tio, amável e generoso – resgata a mocinha do hospital, e Humbert percebe que o jogo acabara. De nada adianta procurar os rastros do salvador, ou raptor.  Quem quer que seja soube bem se esconder, por todo o longo percurso, por estradas e cidadezinhas da América. Como poderia Humbert encontrou o seu dedicado 'irmão'? Ele, o pseudo-irmão, “conseguiu envolver-me inteiramente – a mim e à minha dilacerante angústia – em seu jogo demoníaco.” [p. 341]  e mais, é um mimético: “o tom de seu cérebro, tinham afinidade com as minhas próprias qualidades. Ele me imitava e zombava de mim. Suas alusões eram, positivamente, de ordem intelectual. Era muito lido, sabia francês. Era versado em escamoteação e logomancia. Era um amador da ciência sexual. Tinha caligrafia feminina. […] Deus do céu, como era provocador o pobre diabo! Desafiava-me a erudição.” [p. 341] De modo que na procura sabemos ainda mais sobre o narrador – e menos sobre a Lolita e o 'Tio'. O narrador se sente “andando às apalpadelas nos limites do nebuloso.” [p. 343]

            Adentramos a esperada conclusão da obra. Humbert sem a Lolita. Humbert a pensar: quem era Lolita? Ela que era um corpo do qual desconhecia a mente. Ela que nunca o amou... Tudo é fruto de sua (dele) obsessão, como um ciumento proustiano. Ele bem o sabe. Basta ver como ele nomeia este segmento final da obra, “Dolores Desaparecida” (“Dolorès Disparue”) numa paródia da Albertine Desaparecida (no Brasil, A Fugitiva) de Marcel Proust. Nada mais temos além da constatação de que se passaram 3 anos sem Lolita. E ele se martiriza, angustiado, em melancolia, pois perdeu o Ser que dava sentido a sua vida sem sentido... Escreve poema, contrata detetive, se interna num sanatório. Tudo por causa da obsessão! E ele está cine de sua condição doentia. Mas ele não pode mudar – é vítima do círculo vicioso, em busca das “meninas em flor” (outra imagem proustiana...).

            Assim nada se resolve. Dolores, a Lolita, desaparece, Humbert continua em sua obsessão por mulheres jovens, demasiadamente jovens. Se envolve em outro rolo sexual, para matar sua torturante solidão. Uma mulher fácil e disponível, nada inteligente e boa de cama, eis o que ele precisa para não enlouquecer. Uma mulher sem glamour, mas que exale sexo. E ele confessa tudo, a nós, o leitor, o irmão (Bruder), os hipócritas (como bem sabia Baudelaire...), suas taras e frustrações, “como eu, às vezes, ganhava a corrida entre minha fantasia e a realidade da natureza, a decepção era suportável. Insuportável era o sofrimento que começava quando o acaso entrava na luta e me privava do sorriso que se destinava a mim.” [p. 361]

            Tempos depois, Humbert recebe uma carta de Dolores, revelando-se casada, grávida, e pobre. Então, ele estava de volta à estrada, a investigar até encontrar Lolita, guiado que está por um misto de obsessão mais desejo de vingança. Ele encontra uma Lolita sem glamour, ela que ele amara com um “amor à primeira vista”. Ele leva sua arma, mas não dispara contra ela, ou o marido. É um quadro triste o que ele encontra: uma Dolores, cujo fascínio se perdera, uma ninfa caída, de beleza arruinada. E o jovem marido não é aquele sujeito erudito e enigmático que roubara a moça, 3 anos antes. Quem seria o tal sujeito? Humbert julga que o “leitor astuto” já descobrira. Seria o autor teatral admirado pela menina? O tal Clare Quilt, velha paixão de Lolita? Mas para ela “o passado era o passado”, e Humbert fora até um bom pai, apesar de tudo. No mais, o mundo era mesmo uma espécie de piada.

            É quando, diante dos olhos dela, ele tem noção de si, um homem “quarentão, elegante, esguio” e enfermiço, e ele pode observar o robusto marido Richard (Dick) sem ressentimentos, e notar aquela Dolores Haze que se parece com a mãe, “Graciosamente, em meio de uma névoa azul, Charlotte Haze ergueu-se de seu túmulo.” [p. 376], ali a Lolita já gasta aos 17 anos, que narra o que acontecera, naqueles três anos de ausência. Ela fala sobre o autor teatral, um rancho, convidados, orgias apenas mencionadas. E de como ele, Quilt, a abandonou. Ela, então, passara dois anos a “andar por aí”, em trabalhos braçais, a sobreviver, até encontrar Richard. Aquela Dolores Haze a menina privada de sua infância, diante da qual ele fala em amor, mas será amor ou obsessão? Não seria o amor uma forma de obsessão? Ele se analisa, ciente de nossa zombaria contra o maníaco.

            Os senhores podem zombar de mim, ameaçar evacuar o tribunal, mas, enquanto eu não estiver amordaçado e meio asfixiado, gritarei a minha pobre verdade. Insisto em que o mundo saiba o quanto amei minha Lolita” [p. 380]  é o que ele declara, ele que ainda deseja sua Lolita. Ela, não. Ele chora. Então, para ele somente sobrará a vingança! E espera que sejamos “leitores imparciais” (isto é, “se é que alguém está lendo”) para sua longa digressão sobre o amor por ninfetas, pela dedicação à jovem Dolores, pelas reminiscências das aventuras e desventuras. Ele desvirtuou a menina, tem remorsos, mas como poderia fazer diferente? (Se ele não a seduzisse, o autor teatral o faria... )

            Humbert, nosso narrador sem ilusões, vaga por aí, volta sobre os seus passos, revê o passado, tudo o mesmo nas cidadezinhas provincianas pacatas, outras ninfetas surgirão. Mas um espectro persegue o narrador: o vulto do autor teatral, aquele que o ridicularizou ao roubar-lhe a ninfeta. Entre o delírio e a realidade, o narrador é guiado pela vingança, outra obsessão. Ele narra tudo como uma paródia de conto de fadas, ao estilo de Quilty, através de um vale escuro, com sua floresta úmida e densa, rumo a Mansão do Pavor, após pernoitar numa Estalagem da Insônia, para executar sua vingança, “lucidamente insano, malucamente calmo, caçador encantado e muito bêbado” [p. 402].

            Pois o narrador encontra-se finalmente diante de seu duplo, outro velho pedófilo, refinado e culto, mas não menos sórdido. Um velho autor teatral meio gagá, sem saber com que está, sem qualquer dignidade. A vingança de Humbert será feita na condição de pai de Dolores-Dolly-Lolita. O decadente autor teatral pouco se lembra, um ser vegetativo, meio sonâmbulo, de gesticulação feminina. A vítima não parece muito ciente do que lhe acontece – uma arma apontada contra ele. Eu sou o pai de Dolores e vou matá-lo, insiste o narrador. Sou dramaturgo, conheço os truques, diz o outro. Dois literatos em embate – até agressão física – sem qualquer glamour. Nada como uma cena teatral e patética para encerrar um romance carregado de simulação e dramatismo.    

            Sou um homem mundano, sou um autor de peças teatrais, resmunga o velho decadente. Quanta afetação! Quer enredar Humbert, outro decadente, em suas perversões. Não se trata de uma cena onde o mocinho se confronta com o vilão – temos dois vilões, apenas. A diferença é que um deles narra o que vemos – o outro é a vítima afetada e histérica, e “cômica e absurda”. O narrador confessa, detalhada e exageradamente, seu crime de homicídio, numa cena de “pesadelo de espanto”, quando elimina o seu duplo, seu rival, em sangrento dramalhão. Não há alívio, apenas mais um fardo. Outro crime. Outro condenado.

            É um final grotesco para uma narrativa dramática e confessional. Um narrador que descreve perversões e espera nossa compreensão, como se justificasse seus crimes, “para salvar a minha alma”. Um pedófilo e assassino que narra detalhes de sua vida miserável de obsessão em obsessão. Não fosse sua profunda autoconsciência e horror de si mesmo teríamos uma obra condenável, mesmo repugnante. É seu tom de doentio proustiano que permite uma leitura atenta e mesmo proveitosa. É seu desejo de imortalidade para si e para a Lolita que traz um tom pungente. É, em suma, um desmascaramento de nossas pulsões irracionais, quando cavamos a nossa própria cova, enquanto gracejamos com os coveiros.

Fonte: NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1981


dez/13


Leonardo de Magalhaens



mais sobre o autor & obra





na mídia

filmes

Lolita / 1962
by Stanley Kubrick

Lolita / 1997
by Adrian Lyne

comparações entre os filmes

no filme Beleza Americana / American Beauty 1999
(by Sam Mendes)


 



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