sobre Lolita (Lolita,
1955)
do escritor
russo-norte-americano Vladimir Nabokov (1899-1977)
(tradução: Brenno Silveira /
1981)
Quando se apresenta a figura
do narrador-pervertido
parte 2
Finalmente,
Humbert reencontra Dolores no acampamento e interpreta bem o papel de novo pai.
Ela se mostra diferente, menos bela do que ele imaginava, mas é que a fantasia
realmente aumenta o fascínio da amada. Humbert inventa uma internação de
Charlotte para tratamento, ocultando assim o acidente fatal. De início, ela não
entende bem como portar-se diante do novo pai, nem de como ele se tornou seu
novo pai. “Quando foi que você se apaixonou por mamãe?”, ela quer saber, a
julgar que ele não mais se interessa por ela. Mas ele não perdeu o interesse! E
ela lhe rouba um beijo! “Sabia, claro, que aquilo não passava de um jogo
inocente de sua parte, de uma bobagem de garota a imitar algum romance barato”
[p. 153]. Então ele não pode se empolgar muito, para não assustar a criança.
Convenhamos: ela apenas disputava o hóspede com a mãe.
O
Dr. Edgar H. Humbert e sua filha se alojam num hotel, de modo discreto e
inocente, para melhor camuflar as intenções do narrador, mal podendo se conter.
A menina joga um charme que é puro jogo
de sedução, sim, simulação mesmo, sem saber o quanto de tensão provoca nele.
Ela repete gestos e olhares que já viu nos adultos, nas mulheres, na própria
mãe, mas sem imaginar que reais efeitos causam. Pai e filha se misturam à
rotina do hotel, toilete, restaurante, e ele a ministrar pílulas
sonoríferas como se fossem vitaminas! O que se sucederá?
Ele
interrompe o quadro, a narrativa, volta-se para nós, que o julgamos - “nobres
senhoras do júri! Sede indulgente para comigo! Permiti que tome apenas um
pouquinho de vosso precioso tempo.” [p. 167] – entendamos que ele
preferiria não se envolver mais, não atentar contra a 'pureza' infantil. O
melhor seria deixar a menina em paz. Ainda que ele não acredite tanto na inocência
– num mundo em que as crianças descobrem tudo, sabem muito, e se confundem com
adultos. Lolita é um tanto precoce – em vaidade e capricho, em indisciplina –
mas tudo por despertar da adolescência. Há um impulso erótico na menina – diz o
libertino, a sufocar seu lado moralista – pois ”Lolita já havia demonstrado
ser algo inteiramente diferente da inocente Annabel” [p. 169] revela para
nós, os “alados senhores do júri”, o cínico narrador.
Ele
espera nossa atenção para sua cena de sedução (que não segue como planejado,
com o efeito passageiro do sonífero), “por favor, leitor: qualquer que seja
a sua exasperação com o terno, morbidamente sensível, infinitamente
circunspecto herói do meu livro, não pule estas páginas essenciais! Imagine: eu
não existirei, se o leitor não me imaginar” [p. 175] como uma cumplicidade
sempre explicitada, “vamos mesmo sorrir um pouco. Afinal de contas, não há mal
algum em a gente sorrir”., sempre para
se justificar, para implorar por nossa compreensão e perdão. “se me detenho
na descrição dos tremores e apalpadelas daquela noite distante, é porque
insisto em provar que não sou, nunca fui e jamais poderia ter sido um patife
brutal. As suaves e sonhadoras regiões pelas quais eu rastejava eram patrimônio
de poetas – e não o terreno em que rondava o crime.” [pp. 178-179]
Bem,
chegamos finalmente à confissão do crime. E a culpa jogada sobre a vítima! “Frígidas
e nobres senhoras do júri! Eu julgava que deviam passar meses, talvez anos,
antes que ousasse revelar-me a Dolores Haze; mas, ali pelas seis horas, ela já
estava inteiramente acordada e, às seis e quinze, já éramos, tecnicamente,
amantes. Vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu.”
[pp. 179-180] Ele quer dizer a menina já experimentara um despertar sexual? Que
ela já era instruída? Ela ensina os truques?? Ela é a depravada, não ele! “Não enfadarei os meus eruditos leitores
com uma descrição pormenorizada da presunção de Lolita. Basta dizer que não
encontrei sinal algum de pudor nessa bela e ainda mal desenvolvida jovenzinha”
[p. 181]
Realmente
a leitura deste romance clássico vale pelo narrador, sua elegância cínica, não
exatamente pelo tema, pelo drama (que ainda se adensa). O narrador explicita o
acontecimento narrativo, a espera de nossa cooperação, nós, os juizes, os
jurados, os carrascos. “Tenho de caminhar com cuidado. Tenho de falar num
sussurro. Oh, tu, veterano repórter policial; tu, grave e velho oficial de
Justiça; tu, que já foste policial popular e que, agora, te encontras na
prisão, incomunicável, depois de ajudar durante anos, com dignidade, numa
esquina, os colegiais que tinham de atravessar a rua – todos vós, miseráveis
eméritos, a receber agora lições de um menino! Jamais daria certo – não é
verdade? - se vos apaixonásseis loucamente pela minha Lolita!” [p. 182]
E
finalmente a razão de escrever seu relato, que ora investigamos. “Estou
procurando descrever estas coisas não para revivê-las em minha infinita miséria
atual, mas a fim de separar o que havia de céu e de inferno naquele mundo estranho,
terrível, enlouquecedor –o amor de uma nymphet. O bestial e o belo
fundiam-se em determinado ponto e é essa fronteira que eu gostaria de fixar –
mas sinto que malogro irremediavelmente.” [p. 183]
Então
a desculpa-mor do réu: ele não corrompeu a menina, pois ela já estava
corrompida quando participava destes acampamentos de férias. São os jovens que
se corrompem entre si em brincadeiras sexuais. Não precisam ser seduzidas por
adultos. Afinal Lolita não era nada inocente, ao contrário, mostrava ser “algum
demônio imortal disfarçado em menina.” [p. 189] Imagina ele assim estar
justificado? Que seu crime inexistiu? Que ele foi vítima de uma adolescente?
Mas ele não revela seu “doloroso sentimento de culpa”?
Aqui
já não sabemos mais se estamos diante de uma narrativa ambígua ou um sujeito a
esperar cumplicidade. Ele se denuncia e se justifica, se dirige ao leitor e
pede desculpas às memórias de Charlotte e Dolores. Ele está ciente de tudo e
nada mais pode mudar, está aqui condenado. Revela que a mãe está morta, que a
menina está dominada, que ela não tem para onde ir, senão para o seu lascivo
tutor. Finda a parte 1.
Na
parte 2 até parece que começa outro romance. O tom é de aventureiro, sem
tanto tratado de psiquiatria, sem considerações de pedagogia ou pedantismos já
desbotados. Aqui o relato de viagens, hospedagens, sexo nos motéis (hotéis de
beira-de-estrada, entenda-se), máscaras de pai e filha, cumplicidade entre
pedófilo e vítima. Ele quer nos convencer que a vítima consente e até estimula
a relação perversa. Um homem adulto maduro europeu a desejar e suportar uma
menina norte-americana caprichosa e precoce. Não podia mesmo dar certo.
Nos
sonhos, idealizações doentias de Humbert Humbert ele está a proteger a menina
dos males do mundo (outros pedófilos? Os rivais?) e educá-la para a vida (i.e.,
bem servi-lo sexualmente?) ao contrário do rapaz lá do acampamento que se
aproveitava das meninas. “Esqueçamos, porém, Dolores Haze, a terminologia
legal, terminologia que aceita como racional a expressão 'coabitação libidinosa
e lasciva'. Não sou um criminoso psicopata sexual a tomar liberdades indecentes
com uma criança. O estuprador foi Charlie Holmes; eu sou o terapeuta – uma
nítida questão de distância quanto à diferença. Sou o seu paizinho, Lo. Veja,
tenho aqui um livro erudito acerca de jovenzinhas.” [p. 203]
Lolita
não pode denunciá-lo – pois se ele for preso, quem cuidará dela? O Estado com
seus internatos? Orfanatos? Escolas de reeducação juvenil? É então melhor para
ela continuar sob o domínio do bom paizinho? Com Lolita, o narrador
Humbert, ao volante, sempre apreensivo, segue pelas estradas da América, entre
paisagens e seduções, líricos piqueniques, tudo a compor uma, digamos,
geografia afetiva? Uma espécie de On the Road (refiro-me à obra-prima de
Jack Kerouac, publicada no ano seguinte) do homem maduro e sua nada inocente
Lolita,
Pondo em
movimento a geografia dos Estados Unidos, eu, durante horas a fio, fazia todo o
possível para dar-lhe a impressão de que 'ia a algum lugar', de que rodava rumo
a algum destino preciso, a algum deleite invulgar. Eu jamais vira estradas tão
macias e amáveis como as que agora se
estendiam à nossa frente, através da louca colcha de retalhos de quarenta e
oito Estados. Vorazmente tragávamos aquelas longas rodovias e, em elevado
silêncio, deslizávamos pelos seus brilhantes e negros pisos de dança. [p. 206]
O fato é que o sedutor deve manter a
menina distraída, em expectativas de viagem, sempre curiosa, entre cada
aproximação sexual. É um turismo de fachada o que é descrito, tudo uma farsa. “Ora,
ao ler com atenção o que se segue, o leitor deveria ter em mente não apenas o
circuito geral, tal como foi mal sugerido acima, com suas muitas faixas
laterais e armadilhas de turistas, círculos secundários e laterais e desvios
caprichosos, mas, também, o fato de que, longe de ser uma partie de plaisir,
nossa viagem foi um difícil, retorcido desenvolvimento teleológico, cuja única raison
d'être (estes clichês franceses são sintomáticos) era manter a minha
companheira, entre beijo e beijo, num estado de espírito razoável.” [pp.
209-210]
Em suas viagens, o narrador passa
por momentos de desconfiança, ciúmes, brigas, pois a menina logo amadurece
enquanto mulher, após tantos e profundos 'exercícios' amorosos, “Oh, eu
tinha de manter Lo – a fraca Lo – debaixo de meus olhos! Devido, talvez, ao
constante exercício amoroso, ela irradiava, apesar de sua aparência muito
infantil, algum encanto langoroso especial, que lançava os empregados da garagem, criados de hotel,
excursionistas, terroristas em carros luxuosos, idiotas queimados de piscina,
em crise de concupiscência que bem poderiam lisonjear o meu orgulho, se não
despertassem meu ciúme.” [p. 217]
Fora estas confissões de ciúme,
pouco sabemos dos reais sentimentos do narrador em relação a sua Lolita. É um
desejo de posse? É um interesse meramente sexual? Pois nada há daquela
idealização que movimentou a parte 1 do romance. Agora ele até deprecia
a sua Lolita, ora 'minha querida', ou 'minha pubescente namorada',
ora 'minha vadia colegial', numa oscilação entre a satisfação e a
desconfiança. Afinal, nenhum homem – nem adolescente – deve receber os mesmos
'favores sexuais' que ele recebe da menina-moça. “Ela é minha, minha, minha”
ele se vangloriava.
Como conseguirá o narrador manter a
adolescente longe de outros adolescentes? Afinal, ele é o pai, o padrasto! Não
pode manter a farsa por muito tempo. Ela
é a filha, a enteada, e vai desejar novas amizades, novos rapazes fogosos.
Enquanto isso, ele não se furtava de observar, vislumbrar, apreciar outras
ninfetas, seja em clubes, piscinas, quadras de esportes, parques de diversões,
cinemas. Ele anota cada detalhe do comportamento de Dolores com outras
adolescentes. Tudo isso ele relata com qual propósito? “Relaciono esses
pequenos nadas principalmente para provar aos meus juízes que fiz tudo o que
estava ao meu alcance para dar a Lolita divertimentos deveras interessantes.”
[p. 222]
Mas Humbert quer ser discreto,
passar desapercebido, mas Lolita quer se enturmar, quer aproveitar sua
adolescência, e não ficar apenas à disposição dos jogos eróticos dele, cada vez
mais ousados e ruidosos. Ele não poupa mais cinismo, se dizendo 'pai
apaixonado' ou 'bom pediatra', como se fossem justificações! E Lolita? O que
ela pensa disso tudo? Ou o que ele acha que ela pensa? Ou sente dessa aventura
sexual e turística? “Ela penetrou em meu mundo, a humilde e negra
Humberlândia, com impetuosa voracidade; examinou-a com um alçar de ombros de
divertido desagrado – e, hoje, parece-me que ela estava pronta para afastar-se
dele experimentando algo que se assemelhava a pura aversão.” [p. 226]
Aversão! Entende-se como a curiosidade deu lugar ao desgosto. Humbert só
pensava em desfrutar da menina numa farsa obscena.
E ele ainda espera nossa
compreensão! “Oh, não me encare com ar carrancudo, leitor, pois não pretendo
dar a impressão de que não consegui ser feliz. O leitor deve compreender que,
na posse e escravidão de uma nymphet, o viajante encantado se encontra,
por assim dizer, além da felicidade.” [p. 226] Sua satisfação completa está
longe -mesmo que tenha um 'objeto sexual' à disposição. Ele no íntimo quer a
perdida Annabel Lee, criatura inalcançável num 'reino à beira-mar', que ele
encontra corporificado na 'Annabel Haze' ou 'Dolores Lee',
O hábil
psiquiatra que estuda o meu caso – e para o qual o atual Dr. Humbert já deve
ter adquirido, a esta altura, um estado de leporina fascinação – está, sem
dúvida, ansioso para que eu leve a minha Lolita a uma estação de veraneio à
beira-mar e lá encontre, finalmente a 'satisfação' de um impulso que me
acompanha durante toda a vida, libertando a obsessão 'subconsciente' de um
romance infantil incompleto com a inicial e pequena Miss Lee. [p. 227]
Ele tem expectativas, pois deseja
que a sedução seja discreta, mas com certo glamour, ao ar livre, como um
divertimento, o que não acontece em praias tumultuadas ou sujas, ou climas nada
propícios, a deixar apenas uma certa decepção. “A decepção que devo
registrar (enquanto, aos poucos, transformo minha narrativa na expressão do
risco e do temor contínuos que atravessavam minha felicidade) não deveria, de
modo algum, refletir-se nos líricos, épicos, trágicos, mas nunca arcadianos,
descampados americanos.” [p. 228] Mas qual o problema? “Nos desertos da
América, não será fácil ao amante ao ar livre entregar-se ao mais antigo de
todos os crimes e passatempos.” [p. 229]
Em suas viagens, ele por pouco não
sente o peso da lei, ou é pego por causa de
denúncias. Pode um pai ou tutor sair a viajar por aí com sua enteada ou
pupila? Não deveria ele notificar o Estado? Entregar a menina a um tipo de
conselho tutelar? Mas ousaria o Sr. Humbert aparecer diante de um tribunal ?
Ele acha melhor ser discreto e não ser denunciado. Assim, ele espera passar o
tempo, a desfrutar a beleza precoce da menina, que não será menina para sempre.
Sua Lolita não será mais lolita em breve. Terá ela neta para quem o
narrador será um bom e afetuoso avô? Cinismo, como se é de esperar. Afinal, nem
bom pai ele soube ser.
As viagens precisam cessar, ele precisa
de dinheiro e certa posição social. Chega desta farsa de viagem, dessa fuga
pelas estradas da América! É preciso que Dolores estude (de preferência num
internato para moças), que Humbert se estabeleça num trabalho. Começa outra
parte dentro da parte 2, quando já concluímos a leitura de cerca de 3/5
da obra. Basicamente: Humbert é hóspede, erudito e dissimulado; Humbert é
marido e, pouco depois, é viúvo; Humbert é padrasto (e tutor?) dedicado em
viagens; Humbert tenta ser pai na vida social.
O Monsieur Edgar H. Humbert
teme ser descoberto e denunciado, além de perder a Lolita, e toma todas as
precauções, de forma obsessiva, como lhe é próprio. Ele parece sugerir que
satisfazia todos os desejos da caprichosa Lolita, sempre antenada em
futilidades, sempre ambiciosa, sempre egoísta. É como se ela se aproveitasse
dele – da paixão dele, da obsessão dele! Esta é a defesa? Ele que
patrulha a menina, a impedir seus contatos e amizades! Como ela terá uma vida
social, como ela se desenvolverá enquanto jovem e adulta? Não percebe ele que
estava a destruir a menina? Uma sexualidade adulta agressiva a 'queimar
etapas', a implodir a puberdade, a arruinar a juventude. Ele sabe que ela se
interessa por outros rapazes, e que consegue se esquivar à vigilância doentia dele.
Ela que é sua 'mimada filha-escrava'. Ele que se consome num “constante
estado de ansiedade em que vivem as pessoas culpadas e de coração terno”
[p. 256].
Se Humbert não suporta os rapazes
pubescentes que circulam ao redor de Lolita, ele aprecia muitíssimo as moças,
as possíveis ninfetas, que se incluem em seu (dela) círculo de amizade. “O
leitor já sabe a importância que eu atribuía à presença de um bando de meninas
que pajeassem a minha Lolita – nymphets que seriam como um prêmio de
consolação.” [p. 260] Mas, não são exatamente os rapazes que atraem a jovem
Lolita. Ela prefere os homens maduros, os professores, os treinadores, os
senhores respeitáveis.
Mas ele continua em sua “miserável
história” com suas suspeitas e vigilâncias, enquanto acompanha as aventuras
e desventuras de Dolores no colégio internato.
A vida sexual – ou interesse sexual – da jovem Lolita é motivo de debate
entre as professores, ela que é precoce e ao mesmo tempo reprimida (pelo pai
conservador?), num amadurecimento sexual em descompasso. Se falassem em 'queima
de etapas', estaria o narrador Humbert sob suspeitas? Que criação ele
propiciava à sua caprichosa filhinha? Como lidará ele com esta aluna
indisciplinada?
Humbert precisa abolir a imagem de
'europeu conservador', precisa deixar que sua Lolita se enturmasse com outras
garotas e também rapazes, e precisa deixar que ela participasse de atividades
culturais, artísticas, recreativas, longe dos olhares dele. Como ela poderá se
desenvolver sem contato com outras (e outros) adolescentes? Não pode ser um
desfrutável objeto sexual para sempre. No mais, o glamour sexual de
Lolita está se desvanecendo para o olhar pedófilo – afinal, ela está
amadurecendo, não é mais criança. Ela tem um olhar de mulher, uma ironia
feminina no olhar, um gestual entre o enfado e o desdém. Sim, ela mudou muito,
acabou-se a “inocente fluorescência” que a envolvia.
A crise aflora: a dominada se volta
contra o dominador, pois a menina-moça não aceita mais a escravidão sexual. Uma
discussão, troca de acusações, uma briga: e a Lolita foge na noite. É
encontrada pouco depois, ao telefone. A telefonar para quem? Eles reconciliam:
ela quer deixar a escola, e novamente viajar: mas pode ser que seja um truque dela.
Ela é mesmo caprichosa, se cansa das coisas, desiste facilmente, quer mudanças,
não se apega. Então, novas viagens, voltamos ao início, pois a vida deles é
mesmo uma espécie de 'círculo vicioso'. O narrador tem noção, ainda que
na época das viagens, não tivesse visão de todo o seu destino. Não
conhecia a história toda, como agora conhece, ao narrar.
Rogo ao
leitor que não zombe de mim, nem do aturdimento em que me achava. É fácil,
tanto para ele como para mim, decifrar, a esta altura, um destino já cumprido;
mas um destino em formação não é,
acredite, uma dessas honestas histórias de mistérios em que tudo que se tem de
fazer é não perder de vistas os indícios. […]
Eu não
juraria, por exemplos, que ela não tivesse tido pelo menos uma ocasião, antes
ou durante a nossa viagem pelo meio-oeste, de transmitir informação ou ter
entrado em contato com pessoa ou pessoas desconhecidas. [p. 288]
Assim, entre a vigilância e a
suspeita, se perde todo o encanto que o narrador incensava no início da parte
2, pois a Lolita não é mais a mesma. Ela não pertence a ele, mesmo que um
corpo de menina-moça esteja ao seu lado. Como quem ela se comunica? O que
espera? São detalhes que aqui não serão abordados. Nosso interesse maior pela
obra polêmica de Nabokov não é o enredo em si, a fábula narrada. Antes,
o nosso interesse é despertado pelo o modo da narrativa, o estilo
autoconsciente do narrador cínico. O modo como preenche seu relato com
digressões, descrições, ironia e até metafísica. Com um narrador diferente –
por exemplo, em 3ª pessoa – o interesse pela obra seria menor.
Assim como vimos em O Grande
Gatsby, de Scott Fitzgerald, e veremos em outras obras, como A
Consciência de Zeno, de Italo Svevo, o papel do narrador é essencial para o
impacto estético da obra. Mudemos o narrador, e tudo muda. O narrador está
constantemente falando de si mesmo enquanto fala do/da protagonista. Assim Nick
Carraway fala de Gatsby e de si mesmo, assim Humbert fala sobre Lolita e si
mesmo, tudo se entrelaçando. Assim também Bentinho, em Dom Casmurro, de
Machado de Assis, fala de si mesmo e de Capitu. Sempre um Eu narrador em
relação a um Outro protagonista, objeto de amor e ódio. Mudemos quem narra, mudemos
a perspectiva da narrativa, e teremos outro efeito.
Para o ensaio sobre O Grande Gatsby
e sobre Dom Casmurro
Crônica de insucessos, suspeitas,
ressentimentos, eis a miséria deste ser obcecado por meninas-moças. Ele nunca
está contente, nunca está saciado, sempre à espreita. Será denunciado? Há
alguém a segui-los? Em que espécie de trama ele se encontra? Com quem estará a
menina a traí-lo? Ele nunca tem sossego, sua tragédia é diária. É um obsessivo
incorrigível. É um pervertido, um delinquente, mas que voz narrativa ele exibe!
Que grau de autoconsciência a se autoanalisar! Que olhar deita sobre os
detalhes das pessoas e das coisas! Que memória proustiana para registrar
momentos!
Narrador que nos parece, às vezes,
um ciumento Charles Swann a seguir sua amada Odette, como encontramos no Caminho
de Swann, de Marcel Proust, ou seu Marcel, o narrador-protagonista,
obcecado a ponto de aprisionar sua Albertine. Mas não estamos diante de um
monumento como é ocaso de Em Busca do Tempo Perdido, mas de um narrador
ciente de suas misérias, e sem ele seria apenas o registro de práticas
pedófilas.
Delírios, alucinações, vultos que
perseguem, um certo carro vermelho, tudo se embaralha. Em que espécie de
pesadelo nós, os leitores, adentramos? Onde o sonho, onde a realidade? “Sendo
um assassino dotado de memória sensacional, mas incompleta e pouco ortodoxa,
não posso dizer-lhes, senhoras e senhores, o dia exato em que percebi pela
primeira vez, com a máxima certeza, que o conversível vermelho nos estava
seguindo.” [p. 298] Um homem maduro, apresentável, corpulento aparece na
história, a se aproximar de Lolita. Quem será esta figura? Que ameaça
representa para o criminoso Humbert? Será um detetive, ou será um rival, outro
pedófilo!, a tentar roubar-lhe a ninfeta? “Ó lentos e suaves
pesadelos!”, sim, Humbert estava sendo seguido! E cada vez mais sarcástico,
com os outros e consigo mesmo, em dicas para caso “os senhores quiserem
fazer um filme do meu livro” [p. 304], mesclando sua face aos rostos dos 'Wanted',
os procurados pela Justiça.
Cada ausência, cada sumiço de
Lolita é um tormento. Se ela vai dar uma volta, ir comprar uma revista, eis o
inferno! Pode ser que ela não volte mais! Que paranoia tortura o narrador –
vendo ameaças em toda parte! Sendo seguido, sendo cercado – e apanhado
finalmente! Todos os homens são suspeitos, todos os carros são suspeitos! Tudo
pode não passar de uma projeção de seu SuperEu, se nos deixarmos em
interpretações freudianas. Ele estará delirando de remorsos? “Talvez eu estivesse
perdendo o juízo.” [p. 313] Ele que padecia as angústias de seu 'pobre
coração' em sua 'grotesca viagem'.
Humbert não confiava mais em
Dolores-Lolita, em quem distinguia olhares ambíguos, gestos cênicos,
comportamento mimético. Tudo a fazer parte de um 'fingimento de nymphet'.
Cada sorriso, cada brincadeira, cada vestido novo, cada sedução... pode ser
sedução para outro! Ela não se embelezava para ele, mas para o Outro
desconhecido, o rival! Sim, que dissimulada mocinha, esta Lolita! Uma espécie de
Capitu adolescente, com olhares dúbios, plenos de fingimento. “Vi os olhos
de Lolita – e eles me pareceram mais calculistas do que assustados.” [p.
325] Ela está em combinação com alguém ou será a mania de perseguição? “Afinal
de contas, senhores, estava se tornando mais do que claro que todos aqueles
detetives idênticos, em carros prismaticamente mutáveis, não passavam de
figuras fictícias criadas pela minha mania de perseguição, imagens repetidas
baseadas em coincidências e semelhanças casuais.” [p. 326]
Como poderá o narrador voltar à
racionalidade, se libertar do fascínio obsessivo que o deixa atado à bela
ninfeta? Pois se a menina se adoenta, tem um resfriado, é isto apenas uma
doença – ou parte de um imenso plano para afastá-la dele? Tudo conspira contra
ele? Quem deseja roubar-lhe a Lolita? Ela que nunca o amou, a quem ela deu um
'amor desesperançado' ! Com quem ela estava a conspirar? Será ele a figura do
'pai cruel' que levara a menina a receber ajuda de desconhecidos compassivos?
De modo que alguém – se dizendo o
Tio, amável e generoso – resgata a mocinha do hospital, e Humbert percebe que o
jogo acabara. De nada adianta procurar os rastros do salvador, ou raptor. Quem quer que seja soube bem se esconder, por
todo o longo percurso, por estradas e cidadezinhas da América. Como poderia
Humbert encontrou o seu dedicado 'irmão'? Ele, o pseudo-irmão, “conseguiu
envolver-me inteiramente – a mim e à minha dilacerante angústia – em seu jogo
demoníaco.” [p. 341] e mais, é um
mimético: “o tom de seu cérebro, tinham afinidade com as minhas próprias
qualidades. Ele me imitava e zombava de mim. Suas alusões eram, positivamente,
de ordem intelectual. Era muito lido, sabia francês. Era versado em
escamoteação e logomancia. Era um amador da ciência sexual. Tinha caligrafia
feminina. […] Deus do céu, como era provocador o pobre diabo!
Desafiava-me a erudição.” [p. 341] De modo que na procura sabemos ainda
mais sobre o narrador – e menos sobre a Lolita e o 'Tio'. O narrador se sente “andando
às apalpadelas nos limites do nebuloso.” [p. 343]
Adentramos a esperada conclusão da
obra. Humbert sem a Lolita. Humbert a pensar: quem era Lolita? Ela que era um
corpo do qual desconhecia a mente. Ela que nunca o amou... Tudo é fruto de sua
(dele) obsessão, como um ciumento proustiano. Ele bem o sabe. Basta ver como
ele nomeia este segmento final da obra, “Dolores Desaparecida” (“Dolorès
Disparue”) numa paródia da Albertine Desaparecida (no Brasil, A
Fugitiva) de Marcel Proust. Nada mais temos além da constatação de que se
passaram 3 anos sem Lolita. E ele se martiriza, angustiado, em melancolia, pois
perdeu o Ser que dava sentido a sua vida sem sentido... Escreve poema, contrata
detetive, se interna num sanatório. Tudo por causa da obsessão! E ele está cine
de sua condição doentia. Mas ele não pode mudar – é vítima do círculo vicioso,
em busca das “meninas em flor” (outra imagem proustiana...).
Assim nada se resolve. Dolores, a
Lolita, desaparece, Humbert continua em sua obsessão por mulheres jovens,
demasiadamente jovens. Se envolve em outro rolo sexual, para matar sua
torturante solidão. Uma mulher fácil e disponível, nada inteligente e boa de
cama, eis o que ele precisa para não enlouquecer. Uma mulher sem glamour,
mas que exale sexo. E ele confessa tudo, a nós, o leitor, o irmão (Bruder),
os hipócritas (como bem sabia Baudelaire...), suas taras e frustrações, “como
eu, às vezes, ganhava a corrida entre minha fantasia e a realidade da natureza,
a decepção era suportável. Insuportável era o sofrimento que começava quando o
acaso entrava na luta e me privava do sorriso que se destinava a mim.” [p.
361]
Tempos depois, Humbert recebe uma
carta de Dolores, revelando-se casada, grávida, e pobre. Então, ele estava de
volta à estrada, a investigar até encontrar Lolita, guiado que está por um
misto de obsessão mais desejo de vingança. Ele encontra uma Lolita sem glamour,
ela que ele amara com um “amor à primeira vista”. Ele leva sua arma, mas não
dispara contra ela, ou o marido. É um quadro triste o que ele encontra: uma
Dolores, cujo fascínio se perdera, uma ninfa caída, de beleza arruinada.
E o jovem marido não é aquele sujeito erudito e enigmático que roubara a moça,
3 anos antes. Quem seria o tal sujeito? Humbert julga que o “leitor astuto” já
descobrira. Seria o autor teatral admirado pela menina? O tal Clare Quilt,
velha paixão de Lolita? Mas para ela “o passado era o passado”, e Humbert fora
até um bom pai, apesar de tudo. No mais, o mundo era mesmo uma espécie de
piada.
É quando, diante dos olhos dela, ele
tem noção de si, um homem “quarentão, elegante, esguio” e enfermiço, e
ele pode observar o robusto marido Richard (Dick) sem ressentimentos, e notar
aquela Dolores Haze que se parece com a mãe, “Graciosamente, em meio de uma
névoa azul, Charlotte Haze ergueu-se de seu túmulo.” [p. 376], ali a Lolita
já gasta aos 17 anos, que narra o que acontecera, naqueles três anos de
ausência. Ela fala sobre o autor teatral, um rancho, convidados, orgias apenas
mencionadas. E de como ele, Quilt, a abandonou. Ela, então, passara dois anos a
“andar por aí”, em trabalhos braçais, a sobreviver, até encontrar Richard.
Aquela Dolores Haze a menina privada de sua infância, diante da qual ele fala
em amor, mas será amor ou obsessão? Não seria o amor uma forma de
obsessão? Ele se analisa, ciente de nossa zombaria contra o maníaco.
“Os senhores podem zombar de mim,
ameaçar evacuar o tribunal, mas, enquanto eu não estiver amordaçado e meio
asfixiado, gritarei a minha pobre verdade. Insisto em que o mundo saiba o
quanto amei minha Lolita” [p. 380] é
o que ele declara, ele que ainda deseja sua Lolita. Ela, não. Ele chora. Então,
para ele somente sobrará a vingança! E espera que sejamos “leitores
imparciais” (isto é, “se é que alguém está lendo”) para sua longa
digressão sobre o amor por ninfetas, pela dedicação à jovem Dolores, pelas
reminiscências das aventuras e desventuras. Ele desvirtuou a menina, tem
remorsos, mas como poderia fazer diferente? (Se ele não a seduzisse, o autor
teatral o faria... )
Humbert, nosso narrador sem ilusões,
vaga por aí, volta sobre os seus passos, revê o passado, tudo o mesmo nas
cidadezinhas provincianas pacatas, outras ninfetas surgirão. Mas um espectro
persegue o narrador: o vulto do autor teatral, aquele que o ridicularizou ao
roubar-lhe a ninfeta. Entre o delírio e a realidade, o narrador é guiado pela
vingança, outra obsessão. Ele narra tudo como uma paródia de conto de fadas, ao
estilo de Quilty, através de um vale escuro, com sua floresta úmida e densa,
rumo a Mansão do Pavor, após pernoitar numa Estalagem da Insônia, para executar
sua vingança, “lucidamente insano, malucamente calmo, caçador encantado e
muito bêbado” [p. 402].
Pois o narrador encontra-se
finalmente diante de seu duplo, outro velho pedófilo, refinado e culto, mas não
menos sórdido. Um velho autor teatral meio gagá, sem saber com que está, sem
qualquer dignidade. A vingança de Humbert será feita na condição de pai
de Dolores-Dolly-Lolita. O decadente autor teatral pouco se lembra, um ser
vegetativo, meio sonâmbulo, de gesticulação feminina. A vítima não parece muito
ciente do que lhe acontece – uma arma apontada contra ele. Eu sou o pai de
Dolores e vou matá-lo, insiste o narrador. Sou dramaturgo, conheço os truques,
diz o outro. Dois literatos em embate – até agressão física – sem qualquer glamour.
Nada como uma cena teatral e patética para encerrar um romance carregado de
simulação e dramatismo.
Sou um homem mundano, sou um autor
de peças teatrais, resmunga o velho decadente. Quanta afetação! Quer enredar
Humbert, outro decadente, em suas perversões. Não se trata de uma cena onde o
mocinho se confronta com o vilão – temos dois vilões, apenas. A diferença é que
um deles narra o que vemos – o outro é a vítima afetada e histérica, e “cômica
e absurda”. O narrador confessa, detalhada e exageradamente, seu crime de
homicídio, numa cena de “pesadelo de espanto”, quando elimina o seu
duplo, seu rival, em sangrento dramalhão. Não há alívio, apenas mais um fardo.
Outro crime. Outro condenado.
É um final grotesco para uma
narrativa dramática e confessional. Um narrador que descreve perversões e
espera nossa compreensão, como se justificasse seus crimes, “para salvar a
minha alma”. Um pedófilo e assassino que narra detalhes de sua vida
miserável de obsessão em obsessão. Não fosse sua profunda autoconsciência e
horror de si mesmo teríamos uma obra condenável, mesmo repugnante. É seu tom de
doentio proustiano que permite uma leitura atenta e mesmo proveitosa. É seu
desejo de imortalidade para si e para a Lolita que traz um tom pungente. É, em
suma, um desmascaramento de nossas pulsões irracionais, quando cavamos a nossa
própria cova, enquanto gracejamos com os coveiros.
Fonte:
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Abril
Cultural, 1981
dez/13
Leonardo de Magalhaens
mais sobre o autor & obra
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filmes
Lolita / 1962
by Stanley Kubrick
Lolita / 1997
by Adrian Lyne
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(by Sam Mendes)
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